Watts A.W.
O Budismo Zem
Primeira Parte – Fundamentos e História
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 1 – A Filosofia do Tao

           O Budismo Zen é uma maneira de viver e de encarar a vida que não se integra em qualquer das categorias formais do pensamento moderno ocidental. Não é religião nem filosofia; não é uma psicologia nem um tipo de ciência. É um exemplo do que na China e na Índia se conhece como um “caminho de libertação”, sendo sob este aspecto, semelhante ao Taoismo, Vedanta e Yoga. Como em breve se tornará óbvio, uma caminho de libertação não pode ter definição positiva. Deverá ser sugerido pela definição do que não é, um pouco como o escultor revela uma imagem pelo ato de retirar pedaços da pedra de um bloco.

         Historicamente o Zen pode ser encarado como o produto final de longas tradições na cultura indiana e chinesa, embora seja, atualmente, muito mais chinês que indiano e, desde o século XII, se tenha enraizado profundamente, e de modo extremamente criativo, no Japão. Como fruto dessas grandes culturas, e como exemplo único e particularmente instrutivo de um caminho de libertação, o Zen é uma das mais preciosas dádivas da Ásia ao mundo.

        As origens do Zen são tão Toistas como Budistas e, sendo seu aroma tão particularmente chinês, será talvez melhor começamos por investigar a sua ascentralidade chinesa – ilustrando ao mesmo tempo, com o exemplo do Taoismo, o que se entende por uma caminho de libertação.

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  Grande parte da dificuldade e perplexidade que o Zen causa ao estudante ocidental resulta da sua ausência de familiaridade com as vias do pensamento chinês – vias que diferem extraordinariamente das nossas e são, por esse motivo, de especial valor para nós por permitirem alcançar uma perspectiva crítica em relação às nossas próprias idéias. O problema aqui não é simplesmente dominar diferentes idéias diferindo das nossas... como as teorias de Kant diferem das de Descartes, ou as dos Calvinistas diferem dos Católicos. O problema está em apreciar diferenças nas premissas básicas do pensamento e nos próprios métodos de pensar, e são estas tantas vezes esquecidas  que as nossas interpretações da filosofia chinesa  tendem a tornar-se uma projeção de idéias caracteristicamente ocidentais em terminologia chinesa...inevitável desvantagem de estudar a filosofia asiática através de métodos puramente literários da erudição ocidental, pois as palavras só podem ser comunicativas entre aqueles que partilham de experiências semelhantes.

...A dificuldade não reside tanto na linguagem como nos padrões de pensamento que, até agora, tem parecido inseparáveis do modo acadêmico e científico (ocidentais) de encarar o assunto. A inadequação de tais padrões, face a objetos tais como o Taoismo e o Zen, é largamente responsável pela impressão existente de que o “espírito oriental” é misterioso, irracional e imperscrutável...não há razão de supor que estes assuntos são tão peculiarmente chineses ou japoneses que não tenham ponto de contato com algo da nossa cultura. Embora seja verdade que nenhuma das divisões formais da ciência e do pensamento ocidental correspondem a um caminho de  libertação, o maravilhoso estudo de R.H. Blyth, O Zen na Literatura Inglesa, demonstrou claramente que as bases essenciais do Zen são universais.

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            A  razão por que o Taoismo e o Zen provocam, à primeira vista, tão grande perplexidade no espírito ocidental está em aceitarmos apenas um aspecto restrito do conhecimento humano. Para nós, quase todo o conhecimento é o que um Toista chamaria de conhecimento convencional, pois  não temos a sensação de sabermos qualquer coisa, se não pudermos representar para nós próprios sob a forma de palavras, ou qualquer outro sistema de sinais convencionais, tais como as notações da matemática ou da música. Chama-se de convencional a um conhecimento desta natureza porque, quanto aos códigos de comunicação, depende de um acordo social. Tal como as pessoas que falam a mesma lingua têm acordos tácitos quanto a quais palavras devem representar determinadas coisas, também os membros da cada sociedade, de cada cultura, estão unidos por elos de comunicação, apoiados em todos os tipos de acordo quanto à classificação e avaliação de coisas e atos.
A tarefa da educação é pois tornar as crianças aptas a viver numa sociedade persuadindo-as a aprender e aceitar seus códigos – as regras e convenções de comunicação através das quais a sociedade se mantém unida num todo... Assim, a convenção científica decide se uma enguia é peixe ou ofídio, e a convenção gramatical determina que experiências deverão ser denominadas objetos e quais acontecimentos ou atos...

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“Que acontece ao meu punho (nome-objeto) quando abro a mão?” O objeto desaparece miraculosamente porque um elemento do discurso, geralmente atribuído a uma coisa, ocultava afinal uma ação!...
 Em Inglês (ou português) as diferenças entre coisas e ações são claramente, sem bem que nem sempre logicamente, distintas, mas um grande número de palavras chinesas são utilizadas indistintamente para substantivos e verbos – razão pela qual quem pensa em Chinês terá pouca dificuldade em ver que os objetos são também acontecimentos, que o nosso mundo é mais um conjunto de processos que de entidades.
            ... é fácil apercebermo-nos do caráter convencional das funções, pois um homem que é um pai, pode também ser médico e artista, ou empregado e irmão. É perfeitamemnte óbvio que mesmo a soma total destes rótulos de função está longe de fornecer uma descrição adequada do próprio homem...Aprendemos, profundamente embora bem pouco explicitamente, a identificarmo-nos com um, igualmente convencional aspecto de “eu”. O convencional “eu” ou “pessoa” é principalmente constituído por uma história que consiste numa série de memórias selecionadas, e se inicia a partir do momento do parto.

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         De acordo com o convencionado, não sou simplesmente o que estou agora fazendo. Sou também o que tenho feito, e a minha versão, convencionalmente estruturada, do meu passado, quase chega a parecer mais o “eu” real que aquilo que neste momento eu sou. Porque o que eu sou parece extremamente fluido e intangível, enquanto que o que eu fui é fixo e final. Constitui base firme para predizer o que no futuro serei, e daí decorre estar eu mais intimamente identificado com o que já não existe do que com o que realmente é!
            É importante aceitar o fato de que as memórias e os acontecimentos passados, constituintes da identidade histórica de um homem (ou grupo social?), são apenas uma seleção. Da quase infinita quantidade de acontecimentos e experiências, foram alguns escolhidos – abstraídos – como sendo significativos, e tal significação foi, evidentemente, determinada a partir de padrões convencionais. Quanto à verdadeira natureza do conhecimento convencional, é ele um sistema de abstrações.
...
            A abstração é pois quase uma necessidade para a comunicação, dado que nos habilita a obter uma representação das nossas experiências... Quando afirmamos só ser possível pensar uma coisa de cada vez, é como dizer que o Oceano Pacífico não pode ser engolido num hausto. Temos que o tomar por chávena e bebe-lo pouco a pouco. As abstrações e sinais convencionais são como chávena; reduzem a experiência total a unidades suficientemente simples para serem, uma de cada vez compreendidas.

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             De modo semelhante, as linhas curvas são medidas reduzindo-as a uma seqüência de minúsculos segmentos de reta....

           As fotografias de jornais e as transmissões de televisão constituem outros exemplos do mesmo processo... Por muito que se assemelhe à cena original, é apenas uma reconstituição da cena em termos de pontos, aproximadamente, como as nossas palavras e pensamentos convencionais são reconstituições das experiências vividas, em termos de sinais abstratos. Ainda mais semelhante ao processo mental, é a transmissão, pelas câmaras de televisão, de uma cena natural em termos de uma série linear de impulsos que podem passar ao longo de um fio.

           Assim, a comunicação por sinais convencionais deste tipo, dá-nos uma abstração, a tradução no gênero uma-coisa-por-cada-vez de um universo em que as coisas estão a acontecer todas-ao-mesmo-tempo – um universo cuja realidade concreta escapa sempre à perfeita descrição nestes termos abstratos...

         O caráter linear,  de uma-coisa-de-cada-vez, do discurso e do pensamento é particularmente notável em todas as línguas que utilizam alfabetos, representando a experiência em longas filas de letras. Não é fácil dizer porque devemos nós comunicar com outros (falar) e com nós próprios (pensar) por este método de uma-coisa-de-cada-vez. A própria vida não se processa deste modo embaraçoso e linear, e dificilmente poderiam nossos próprios organismos viver por um momento sequer se tivessem de se controlar, tomando nota de cada respiração , de cada pancada do coração, de cada impulso neural. Mas se nos encontramos na obrigação de encontrar explicações para esta característica do pensamento, o sentido da vista oferece uma analogia sugestiva.

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            Sucede que temos dois tipos de visão – central e periférica, que não deixam de apresentar semelhanças com a luz incidente e a luz difusa. A visão central é usada para um trabalho acurado, como a leitura, em que os nossos olhos, como luzes incidentes, se focam sobre pequenas áreas, umas após outra. A visão periférica é menos consciente, menos brilhante que o raio intenso da luz incidente. Usamo-la para ver à noite e para notar “subcosncientemente” objetos e movimentos fora da linha direta da visão central. Ao contrário da luz incidente, pode abranger um grande número de coisas ao mesmo tempo.

           Existe pois uma analogia – e talvez mesmo mais que mera analogia – entre visão central e o pensamento consciente, do tipo uma coisa de cada vez, e entre a visão periférica e o processo assaz misterioso que nos habilita a regular a incrível complexidade dos nossos corpos, sem que precisemos pensar...

            Neste aspecto a linguagem escrita chinesa tem uma ligeira vantagem sobre a nossa, e é talvez sintomática de uma modo diferente de pensar. É também linear, também uma série de abstrações, recolhidas uma de cada vez. Mas os seus sinais escritos estão um pouco mais próximos da vida que as palavras soletradas, pois são essencialmente representações gráficas, retratos, e como diz  o provérbio chinês: “Mostrar uma vez, vale mais que descrever cem vezes”...

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Ora a tendência generalizada do espírito ocidental é para sentir que não podemos compreender verdadeiramente o que não podemos representar, o que não conseguimos comunicar por meio de sinais lineares – pelo pensamento.

Somos como o “jarrão” que não consegue aprender uma dança se lhe não desenharmos um diagrama dos passos... Seja pelo que for, não confiamos na “visão periférica” do nosso espírito, e não a utilizamos completamente. Para aprendermos música restringimos toda uma gama de tons e ritmos a uma notação de intervalos, tonais e rítmicos, fixos – uma notação incapaz de representar a música oriental. É certo que o músico oriental tem um esboço de notação, mas apenas o utiliza como auxílio para recordar a melodia. Ele aprende música , não pela leitura de notas, mas ouvindo as execuções de um mestre, apanhando-lhe o “jeito”, e copiando-o, o que o habilita a adquirir requintes tonais e rítmicos que, no Ocidente, só encontram paralelo no jazz, que utiliza o mesmo método de aproximação.

Longe de nós sugerir que os ocidentais não usem, pura e simplesmente, o “espírito periférico”. Sendo humanos, constantemente o utilizamos, e cada artista, cada operário, cada atleta, põe em ação m desenvolvimento específico dos seus poderes. Mas, acadêmica e filosoficamente não é respeitável. Mal começamos ainda a aprender as suas possibilidades, e raramente, se não mesmo nunca, nos ocorre que uma das suas mais importantes utilizações é para aquele “conhecimento da realidade” que tentamos atingir através de desajeitados cálculos da teologia, metafísica e inferência lógica.

Ao encararmos a antiga sociedade chinesa, encontramos duas tradições “filosóficas”, representando partes complementares – Confucionismo e Taoismo. Em termos gerais, a primeira trata das convenções lingüísticas, éticas, legais e rituais, que fornecem à sociedade seu sistema de comunicação. Por outras palavras, o Confucionismo preocupa-se com o conhecimento convencional e, sob seus auspícios, as crianças são educadas de modo que suas naturezas, originalmente

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indóceis e fantasiosas, se adaptem ao leito de Procrustes (1) da ordem social. O indivíduo defini-se a si próprio e ao seu lugar na sociedade, em termos de formulações confucianas.

Por outro lado, o Taoismo é, regra geral, ocupação de homens mais idosos, e especialmente de homens que se retiram da vida ativa na comunidade. Este retirar-se da sociedade é uma espécie de símbolo exterior de uma libertação interior dos laços dos padrões convencionais de pensamento e conduta, pois o Taoismo ocupa-se do conhecimento não convencional, de uma compreensão da vida obtida diretamente e não através dos termos lineares e abstratos do pensamento representacional.

O Confucionismo preside pois à tarefa, socialmente necessária, de obrigar a espontaneidade original da vida a adaptar-se às rígidas regras da convenção – uma tarefa que não só implica conflito e dor, mas também a perda daquela peculiar naturalidade e não-consciência-de-si-próprio, pelas quais são as crianças tão amadas, e que é por vezes readquirida por santos e sábios. A função do Taoismo reside em reparar o inevitável dano causado por tal disciplina, e não só restituir mais ainda desenvolver a espontaneidade original, que é denominada tzu-jan ou “auto-justaposicionismo”... a espontaneidade da criança, tal como tudo que com ela se relaciona, é ainda infantil. A sua educação encoraja lhe a rigidez mas não a espontaneidade. Em determinadas naturezas, o conflito entre convenção social e a espontaneidade reprimida é tão violenta que se manifesta no crime, na insanidade e na neurose, preços pelos quais pagamos o que, por outro lado, representa um indubitável benefício, ou seja, a ordem.

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Mas o Taoismo não deve de modo algum ser entendido como uma revolução contra o convencional, embora tenha sido por vezes usado como pretexto de revoluções. O Taoismo é um caminho de libertação, a qual nunca se alcança por meio de revoluções, visto ser notório estabelecerem estas, piores tiranias que aquelas que destroem. Libertar-se da convenção não é expulsa-la violentamente, mas sim não ser por ela iludido. É estar apto a utiliza-la como instrumento, em vez de ser por ela usado.

O Ocidente não possui qualquer instituição reconhecida que corresponda ao Taoismo, porque a nossa tradição espiritual Hebraico-Cristã identifica o absoluto – Deus – a ordem moral e lógica da convenção. Quase se poderia chamar a este fato uma das mais importantes catástrofes culturais, porque confere uma excessiva autoridade à ordem social, atraindo precisamente as revoluções contra a religião e a tradição, tão características da História ocidental. Uma coisa é sentir-se o indivíduo em conflito com as convenções socialmente sancionadas, mas outra, muito diferente, sentir-se em luta com as próprias raízes ... da vida, com o próprio Absoluto. Este ultimo caso alimenta um sentimento de culpa tão desproporcionado, que não pode deixar de redundar na negação da natureza própria, ou na rejeição de Deus. Dado que a primeira destas alternativas é fundamentalmente impossível – tanto como mastigarmos nossos próprios dentes – a segunda torna-se inevitável, quando paliativos tais como a confissão deixam de ser efetivos. Tal como está na natureza das revoluções, a revolução contra Deus dá lugar à pior das tiranias, a do estado absolutista – pior porque não pode sequer perdoar, e porque nada reconhece fora dos poderes de sua jurisdição...

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            Quando o trono do Absoluto é deixado vago, o relativo usurpa-o e comete a verdadeira idolatria, a verdadeira indignidade contra Deus – a absolutização de um conceito, de uma abstração convencional. Mas é pouco provável que o trono tivesse chegado a vagar se, em certo sentido, o não estivesse já – se a tradição ocidental tivesse alcançado algum modo de apreender diretamente o Absoluto, fora dos termos da ordem convencional.

            Evidentemente, a própria palavra “Absoluto” nos sugere algo de abstrato e conceitual, tal como “Puro Ser”. Mesmo a nossa ideia de “espírito” como oposta à “matéria” parece ter mais afinidade como o abstrato que como o concreto. Mas no Taoismo, tal como em outros caminhos da libertação, o Absoluto nunca deve ser confundido cm o abstrato. Por outro lado, se dizemos que o Tao, como é chamada a Realidade fundamental, é mais o concreto que o abstrato, pode isso conduzir a mais confusões ainda, visto estarmos habituados a associar o concreto com o material, o fisiológico, o biológico, e o natural como coisa distinta do sobrenatural. Porém, partindo dos pontos de vista taoista e budista, continuam estes a ser termos para esferas convencionais e abstratas de conhecimento.

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... para começarmos a compreender a que se refere o Taoismo, devemos esta pelo menos preparados para admitir a possibilidade de um modo de encarar o mundo diferente do convencional... diferente do conteúdo da nossa consciência superficial, a qual pode apenas apreender a realidade sob a forma de uma abstração (ou pensamento, o nien chinês) de cada vez...

O Taoismo é uma extensão deste tipo de conhecimento, uma extensão que nos dá um aspecto muito diferente de nós próprios, relativamente àquilo a que estamos convencionalmente habituados, um aspecto que liberta a mente humana da constritiva identificação com o ego abstrato.

            Segundo a tradição, o fundador do Taoismo, Lao-Tzu, foi um contemporâneo mais idoso que Kung Fu Tzu, ou Confúcio, que morreu em 479 A.C. Lao-Tzu tem sido considerado o autor do Tao Te Ching, um pequeno livro de aforismos, estabelecendo os princípios do Tao e o seu poder ou virtude (Te). Mas a filosofia tradicional chinesa atribui tanto o Taoismo como o Confucionismo a uma fonte ainda mais antiga, a um trabalho que jazz nos próprios fundamentos do pensamento e cultura chineses, escrito entre 3000 e 1200 A.C. É ele o I Ching, ou Livro das Mudanças.

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            O I Ching é ostensivamente um livro de adivinhação, Consiste em oráculos baseados em sessenta e quatro figuras abstratas, cada uma das quais, composta por seis linhas. As linhas são de duas espécies – divididas (negativo) e não divididas (positivo) – e as figuras de seis linhas, ou hexagramas, julga-se terem sido baseadas nos vários modos como a concha de uma tartaruga estala, pela ação do calor. Esta crença reporta-se a um antigo método de adivinhação em que o adivinho abria um furo na carapaça de uma tartaruga, a aquecia, e predizia depois o futuro baseado nas fendas da carapaça assim formadas... um interprete do I Ching poderia discutir energicamente os méritos relativos de nosso modo de tomar decisões importantes. Julgamos tomar decisões racionais porque as baseamos numa compilação de dados acerca do assunto em questão. Não dependemos de ninharias tão insignificantes como o lançar de uma moeda ao ar, ou os desenhos formados pelas folhas de chá ou pelas fendas numa carapaça.

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Mas, mesmo assim, ele poderia perguntar se sabemos realmente quais são as informações relevantes, posto que os nossos planos são constantemente alterados por incidentes totalmente imprevistos. Poderia perguntar ainda como podemos nós saber se já recolhemos informações suficientes para, a partir delas, tomarmos a decisão. Se fôssemos rigorosamente “científicos” no coligir de dados para as nossas decisões, levar-nos-ia tanto tempo a junta-los que o tempo de agir teria passado há muito quando o trabalho chegasse a estar completo. Portanto, quando sabemos nós que estamos já na posse dos  dados necessários? Será que a própria informação nos diz que é suficiente? Muito pelo contrário. Damos os passos necessários para recolher de modo racional as informações requeridas e logo, só porque tivemos um palpite, ou porque estamos cansados de pensar, ou porque chegou a altura e decidir, agimos. O interprete do I Ching poderia então perguntar-nos se não será isso decidir a partir de “ninharias insignificantes”, tanto como se tivéssemos espalhado ao acaso varinhas de aster.

            Por outras palavras, o método “rigorosamente científico” de predizer o futuro apenas pode ser aplicado em casos especiais – quando não se requer uma ação imediata, quando os fatores em causa são, na maioria, mecânicos, ou em circunstâncias tão restritas que se tornam triviais. A maior parte de nossas decisões depende do “palpite” – por outras palavras, da “visão periférica” da mente. Assim, a segurança das nossas decisões repousa fundamentalmente sobre a nossa capacidade de “sentir” a situação, sobre o grau de desenvolvimento da “visão periférica”.

            Todo intérprete do I Ching o sabe. Ele sabe que o livro, em si, não contém nenhuma ciência exata, mas antes um instrumento assaz útil, que será eficaz em suas mãos se ele tiver uma boa “intuição”, ou se, como ele diz, estiver “no Tao”. Por isso ninguém consulta o oráculo sem uma preparação adequada, sem passar, calma e meticulosamente, através dos rituais prescritos, de modo a levar a mente até o estado de tranquilidade em que se sente que a “intuição” age com maior eficácia. Dir-se-ia pois que, se as origens do Taoismo devem ser fundadas no I Ching, não o serão tanto no texto do próprio livro como no modo em que foi usado e nos pressupostos que lhe servem de base.

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 A experiência de tomar decisões por intuição pode muito bem demonstrar que este aspecto “periférico” da mente, dá melhores resultados quando não tentamos interferir nele, quando deixamos que trabalhe por si próprio – tzu-jan, espontaneamente, “auto-justa-posto”.

            Assim se começam a revelar os princípios do Taoismo. Em primeiro lugar, vem o Tao – o “processo” indefinível, concreto, do mundo, o caminho da vida. A palavra chinesa significa originariamente um caminho ou estrada, e algumas vezes “falar”, pelo que a primeira linha do Tai Te Ching contém um trocadilho sobre os dois significados:

             O Tao que pode ser falado não é eterno Tao.

 Lao Tzu diz:

          Algo vago existia antes que surgissem o céu e a terra. Tão calmo! Tão vazio! Sozinho se mantém sem mudança; em tudo age, sem fadiga. Pode ser considerado como a mãe de tudo que sob o céu existe. Desconheço seu nome, mas chamo-o pela palavra Tao.

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             “Poder mental” é ching, uma palavra que combina as ideias de essencial, sutil, psíquico ou espiritual, e destro. O sentido parece ser que, tal como a nossa cabeça carece de importância aos olhos do observador e é, no entanto, a fonte da inteligência, assim também o vago, aparentemente vazio, e indefinível Tao, é a inteligência que modela o mundo com uma destreza para além da nossa compreensão.

                       COISAS CULTIVADAS      X       COISAS FEITAS

             A diferença essencial entre O Tao e a ideia habitual de Deus reside em que, enquanto Deus produz o mundo fazendo (wei), o Tao produ-lo “não-fazendo” (wu-wei) – aproximadamente, o que se entende por “cultivar”, pois as coisas feitas são partes separadas postas em conjunto, como as máquinas, ou coisas talhadas de fora para dentro, como as esculturas. Enquanto as coisas cultivadas se dividem a si próprias em partes, de dentro para fora. Dado que o universo natural funciona principalmente segundo os princípios do crescer e desenvolver-se, como as coisas cultivadas , pareceria positivamente extraordinário, para a mentalidade chinesa, perguntar como foi ele feito. Se o Universo tivesse sido feito, certamente haveria alguém que sabe como foi feito – que pudesse explicar como foi ele posto em conjunto, pedaço por pedaço,..  como montar uma máquina. Mas um universo que cresce, exclui por completo a possibilidade de saber como cresce nos desajeitados termos do pensamento e da linguagem, pelo que nenhum taoísta pensaria sequer em perguntar se o Tao sabe como produz o universo, pois ele age de acordo com a espontaneidade e não de acordo com um plano. Lao Tzu diz:

             O Princípio do Tao é a espontaneidade.

             Mas a espontaneidade não é, de modo algum, um impulso cego e desordenado, um mero poder de capricho. Uma filosofia restringida às alternativas da linguagem convencional é incapaz de conceber uma inteligência que não funcione de acordo com um plano, de acordo com uma ordem (um-de-cada-vez) de pensamento. Contudo, a evidência concreta de uma tal inteligência está junto de nós, nos nossos próprios corpos, impensadamente organizados.(!!!???)

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 O Tao não “sabe” como produz o universo, tal como nós não “sabemos” como construir os nossos cérebros. Segundo as palavras de uma grande sucessor de Lao-Tzu, Chuang-tzu:

             Coisas são produzidas ao nosso redor, mas ninguém lhes conhece o de onde. Elas saem, mas ninguém vê por que porta. Os homens, todos eles, dão valor àquela porção do conhecimento que é conhecida. Não sabem como utilizar o Desconhecido a fim de alcançar o conhecimento. Não é isso um desatino?

             A relação convencional do conhecedor para o conhecido é, muitas vezes, a do controlador para o controlado, e assim do senhor para o servo. Assim pois, enquanto Deus é o dominador do universo, dado que “tudo sobre ele! Ele sabe! Ele sabe!”, a relação do Tao para o que produz é completamente diferente.

             O grande Tao por todo lado corre,
            À direita e à esquerda.
            Tudo, para existir, depende dele,
            e nada ela abandona.  
 
           Não invoca direitos sobre o que realiza.
            Todas as coisas ama e alimenta,
            Mas não invoca isso para delas ser senhor.

             Na vulgar concepção ocidental, Deus tem também o conhecimento de si próprio...

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         Os críticos ocidentais fazem muitas vezes troça de tão nebulosas maneiras de encarar o Absoluto, ridicularizando-as como “nevoentas e místicas”, em contraste com as suas próprias opiniões, fortemente definidas. Porém, como disse lao-Tzu:

             Quando o homem superior ouve falar do Tao,
            faz o possível para o praticar.
            Quando o homem médio ouve falar do Tao,
            Uma vezes o guarda outras vezes o perde.
            Quando o homem inferior ouve falar do Tao,
            ri dele em altas gargalhadas.
            Se não rir, é que não é o Tao

            Porque é impossível apreciar o que o Tao significa sem se passar a ser, num sentido muito especial, estúpido. Enquanto o intelecto consciente tentar freneticamente encerrar o mundo na sua teia de abstrações, enquanto insistir em que a vida seja delimitada às sua rígidas categorias, manter-se-á incompreensível a especial disposição própria do Taoismo; e o intelecto acabará por se cansar. O Tao só é acessível à mente que pode praticar a simples e sutil arte de wu-wei que, após o Tao, é o segundo princípio importante do Taoismo.

           Vimos que o I Ching tinha dado à mentalidade chinesa alguma experiência de chegar espontaneamente a decisões que são eficazes conforme o grau em que se sabe como deixar a mente á vontade, confiando em que trabalhe por si própria. Isto é wu-wei, dado que wu significa “não” e wei significa “ação”, “construir”, “fazer”, “esforço”, “tensão” ou “tarefa”.  Para voltarmos ao exemplo da visão ocular, a visão periférica funciona mais eficazmente – como no escuro – quando vemos pelo canto do olho e não encaramos diretamente as coisas. De modo semelhante, quando pretendemos ver os pormenores de um objeto longínquo, por exemplo um relógio, os olhos devem estar descontraídos sem fixar sem tentar ver.  De igual modo, por muito que esforcemos os músculos da boca e da língua,

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 não conseguiremos tornar melhor o gosto da comida. Devemos confiar em que os olhos e a língua façam a tarefa por si próprios.

            Mas quando aprendemos a dar demasiada fé à visão central, à aguda luz incidente dos olhos e da mente, não podemos readquirir os poderes da visão periférica, se não descontrairmos primeiro o tipo de olhar agudo e fixo... Não se trata apenas de uma tranquilidade da mente. Segundo as palavras de Chuang-tzu: “o homem perfeito usa a sua mente como um espelho. Ela nada aprisiona e nada recusa. Recebe mas não conserva”. Quase se poderia dizer que a mente se “entorpece” um pouco, a fim de compensar uma claridade demasiado viva...

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 ... escreve Chuang-tzu, sobre o mesmo tema:

           O homem de caráter (te) vive em casa sem exercitar sua mente, e executa ações sem preocupação. As noções de certo e errado, os louvores e as censuras dos outros, não o perturbam. Quando, em todos os quatro mares, todas as pessoas se podem divertir, aí reside a felicidade para ele... Pesaroso no aspecto, parece uma criança que perdeu a mãe; parecendo estúpido, anda ao acaso como quem se perdeu no caminho. Tem dinheiro para gastar, mas não sabe de onde lhe vem. Bebe e como o estritamente necessário e não sabe de onde vem o alimento.

             Lao-tzu é ainda mais enérgico na sua aparente condenação da sagacidade convencional:

 Suprime a sagacidade; abandona o saber,
            e o povo terá um centuplicado benefício.
            Suprime “humanidade”; abandona a justiça,
            e o povo terá de novo amor pelo semelhante.
            Suprime a esperteza; abandona o utilitário,
            e não haverá ladrões nem salteadores...
            Torna-te desafetado;
            Estima a sinceridade!
            Minimiza o que é pessoal; 
            Reduz os desejos.

            A ideia não é reduzir a mente humana a uma imbecil vacuidade, mas trazer de novo à cena a sua inata e espontânea inteligência, usando-a sem a forçar. É fundamental tanto para o pensamento taoista como o confucionista, que se confie no homem natural e, segundo seu ponto de vista, daí resulta que a desconfiança ocidental em relação à natureza humana – quer teológica, quer tecnológica – é uma espécie de esquizofrenia. Segundo este modo de ver, é impossível, seja a quem for, acreditar-se inatamente maligno sem desacreditar essa mesma crença, dado que todas as noções de uma mente pervertida

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 forçosamente seriam noções pervertidas. Embora religiosamente “emancipada”, a mentalidade tecnológica mostra que herdou a mesma dissidência contra si própria quando tenta submeter a ordem humana ao controle da razão consciente. Esquece que não se pode confiar na razão quando não se pode confiar no cérebro, dado que o poder da razão depende de órgãos que foram criados pela “inteligência inconsciente”.

           A arte de deixar a mente agir sozinha é objeto de uma vívida descrição por parte de outro autor taoísta, Lieh-Tzu (aprox.. 398 A.C.), célebre pelo misterioso poder de ser capaz de cavalgar no vento. Refere-se a isto, sem dúvida, à peculiar sensação de “caminhar no ar” que aparece quando pela primeira vez a mente se liberta. Diz-se que, certa vez, quando perguntaram ao Professor D.T. Suzuki o que se sentia ao atingir o satori, a experiência Zen do “acordar”, ele respondeu: “Exatamente como qualquer outra vulgar experiência do dia a dia, só que duas polegadas acima do solo!”.

           Após tê-lo servido... pelo espaço de três anos, a minha mente não se atrevia a refletir sobre o certo e o errado, os meus lábios não se atreviam a falar de lucros e perdas. Então, pela primeira vez, o meu mestre concedeu-me um olhar – e isso foi tudo.

                Ao fim de cinco anos houvera uma mudança; a minha mente refletia sobre o certo e o errado, e meus lábios falavam de lucros e perdas. Então, pela primeira vez, afrouxou a severidade de seu semblante e sorriu.

                Ao fim de sete anos houve outra mudança. Deixei que a minha mente refletisse no que lhe aprouvesse, mas ela deixou de se preocupar como o certo e o errado. Deixei que meus lábios pronunciassem o que lhes apetecesse, mas eles deixaram de falar em lucros e perdas, não tinha eu conhecimento, tanto no que a mim se referia como no que dizia respeito aos outros... O interno e o externo tinham se fundido na unidade. Daí em diante, não havia já distinção entreolho e ouvido, ouvido e nariz, nariz e boca; todos eram o mesmo.

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 A minha mente estava gelada e meu corpo dissolvido, carne e ossos fundidos em uma só substância. Não tinha a menor consciência daquilo sobre que o meu corpo repousava, ou do que havia sob os meus pés. Era transportado de um lado para o outro, na asa do vento, como palha seca ou folhas caindo de uma árvore. Em verdade, não sabia se o vento me cavalgava ou se eu cavalgava o vento.

             O estado de consciência descrito não deixa de se assemelhar a uma agradável embriaguez – embora sem os efeitos do álcool na manhã seguinte! Chuang-tzu deve ter notado a semelhança, pois escreve:

             Um homem embriagado que cai de uma carruagem, embora se possa magoar, não morre. Os seus ossos são iguais aos das outras pessoas; mas é de modo diferente que ele se encontra com o desastre. O seu espírito está numa condição de segurança. Ele não tem consciência de viajar na carruagem; ele não tem consciência de cair dela. Ideias de vida, morte, medo, etc., não põem entrar no seu peito; e por isso não sofre ele o contato com existências objetivas. E se uma tal segurança pode ser obtida no vinho, quanto maior é aquela que se pode obter na espontaneidade.

             Posto que Lao-Tzu, Chuang-tzu e Lieh-tzu eram todos insuficientemente conscientes para escreverem livros assaz ininteligíveis, podemos assumir que parte dessa linguagem é, mais uma vez, exagerada e metafórica. A "inconsciência” de que falam não é o coma, mas aquilo que os expoentes do Zen significaram, mais tarde, por wu-hsin, literalmente “não mente”, ou seja, não-auto-consciente. É um estado de total unificação em que a mente funciona livre e facilmente liberta da sensação de uma segunda mente ou ego, debruçada sobre ela com um cacete na mão. Se o homem comum é aquele que, para caminhar, tem que levantar as pernas com as mãos, o Taoista é aquele que aprendeu a deixar as pernas andarem sozinhas.

           Várias passagens dos textos taoistas sugerem que a “não-mente” é o emprego total da mente do mesmo modo pelo qual usamos os olhos ao pousá-los sobre vários objetos mas

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             Sem fazer um esforço especial para apreender qualquer deles. Segundo Chuang-tzu:

        O bebê olha as coisas durante todo o dia sem pestanejar; isto é assim porque os seus olhos não estão focados sobre qualquer objeto particular. Ele avança sem saber pra onde vai, para sem saber aquilo que faz. Submerge-se e une-se ao que o rodeia, e com o que rodeia se move. Estes são os princípios da higiene mental.

             E ainda:

            Se regulares o teu corpo e unificares sua atenção, sobre ti descerá a harmonia do céu. Se assimilares a tua consciência do mundo, e unificares os teus pensamentos, o espírito escolherá residência junto a ti. Te (virtude) te vestirá, e o Tao te abrigará. Os teus olhos serão como os do bezerro recém-nascido, que não procuram o consequente.

            Cada um dos outros sentidos pode ser similarmente utilizado para ilustrar o funcionamento “não-ativo” da mente – escutar sem fazer esforço para ouvir, cheirar sem inalações fortes, provar sem dar voltas à língua, tocar sem comprimir o objeto. Cada um constitui uma aplicação especial da função da mente que age através de todos, e que em chinês se designa pela peculiar palavra hsuin.

            Este termo é tão importante para compreensão do Zen que será necessário fazer uma tentativa para explicar o que o Taoismo, e o pensamento chinês em geral, por ele entendem. Traduzimo-lo geralmente por “mente” ou “coração”, mas nenhuma destas palavras é satisfatória.

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 A forma original do ideograma parece ser uma figura representativa do coração, ou talvez dos pulmões ou do fígado, e quando um chinês fala do hsin acontece muitas vezes apontar para o centro do peito, um pouca abaixo do coração.

            A dificuldade das nossas traduções reside em ser “mente” demasiado intelectual, demasiado cortical, enquanto que “coração” no seu sentido corrente é demasiado emocional – mesmo sentimental. Além disso, hsin não é sempre usado com o mesmo exato sentido. Por vezes utiliza-se relativamente a uma obstrução que deve ser removida, como em wu-hsin, “não-mente”. Porém, outras vezes, é utilizado num sentido quase sinônimo do Tao. Este encontra-se principalmente na literatura Zen, que abunda em frases como “mente original” (pen hsin), “mente Buda” (fu hsin), ou “fé na mente” (hsin hsin). Esta contradição aparente resolve-se a partir do princípio de que “a verdadeira mente não é mente”, o que significa que hsin é verdadeiro, está a funcionar bem, quando funciona como se não estivesse presente. Do mesmo modo, os olhos estão a ver bem quando não se veem a si próprios, em termos de pontos ou manchas no ar.

            Tudo bem considerado, dir-se-ia que hsin significa a totalidade do nosso funcionamento psíquico e, mais especificamente, o centro deste funcionamento, que é associado ao ponto central da parte superior do corpo... O ponto importante está em que, de acordo tanto com o Taoismo como com o Zen, o centro de atividade da mente não reside no processo consciente de pensar, no ego.

            Quando um homem aprendeu a deixar a sua mente à vontade, a fim de que funcione do modo integrado e espontâneo que lhe é natural, começa ele a apresentar o especial tipo de “virtude” ou “poder” chamado te. Não significa isto virtude no sentido corrente de retidão moral, mas no sentido mais antigo de eficácia, como quando fala das virtudes curativas de uma planta.

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 Além disso, o te é virtude desafetada ou espontânea, que não se pode cultivar ou imitar por qualquer método deliberado. Diz Lao-Tzu:

  Te superior não é te
              e assim tem
te.  
             Te inferior não deixa livre o te,  
            e assim não é
te. 
            Te superior é não-ativo (wu-wei)  e sem fim definido.  
Te inferior é ático e tem um fim.

             A tradução literal tem uma força e profundidade que se perde em paráfrases como esta: “A virtude superior não tem consciência de si própria como virtude, por isso é realmente virtude. A virtude inferior não pode dispensar a virtuosidade, por isso não é virtude”.

            Quando os Confucionistas prescreveram uma virtude que dependia da observância artificial de regras e preceitos, os Taoistas fizeram notar que uma tal virtude era convencional e não genuína. Chuang-tzu escreveu o seguinte diálogo imaginário entre Confúcio e Lao-Tzu:

           “Diz-me”, inquiriu Lao-Tzu, “em que consiste a caridade e o dever para com o nosso vizinho?”

           “Consistem”, respondeu Confúcio, “numa capacidade de nos regozijarmos em todas as coisas; no amor universal, sem o elemento da própria pessoa. São estas as características da caridade e do dever para com o nosso vizinho.”

            “Que baralhada!” “Não é o amor universal contradição de si próprio? Não é a tua eliminação da própria pessoa uma manifestação positiva da própria pessoa”? ... aí está o universo, cuja regularidade é incessante; aí estão o sol e a lua, cujo brilho é incessante; aí estão as estrelas... ai estão as árvores e os arbustos, crescendo para o alto sem exceção. Sê como estes: segue o Tao, e serás perfeito. Pois para que estas vãs pesquisas da caridade e do dever para com o nosso vizinho, como quem batesse um tambor ao procurar um fugitivo. Ai de nós, senhor, que muita confusão trouxeste a mente do homem.”

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            A crítica taoísta da virtude convencional não se aplica apenas à esfera moral mas também às artes, ofícios e negócios. Segundo Chuang-tzu:

             Estar a inteligência inconsciente do positivo e do negativo implica que o coração (hsin) está comodamente instalado...

            Eis porque “o sábio faz provisões para o estomago e não para os olhos”, ou seja, avalia através do conteúdo concreto da experiência, e não pela sua conformidade com padrões puramente teóricos.

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 Em suma, o te é o inimaginável engenho e poder criador do funcionamento espontâneo e natural do homem – um poder que fica bloqueado quando se tenta dominá-lo em termos de métodos e técnicas formais. Assemelha-se à destreza da centopeia, ao usar as cem pernas ao mesmo tempo.

             A centopeia era feliz, completamente,
            Até que, de brincadeira, um sapo
            Disse, “ouve, qual é a perna que primeiro moves?”
            Isto tanto lhe trabalhou na mente,
            Que se ficou distraída num sulco,
            Pensando em como correr.

            Um profundo respeito pelo te está na base de toda a mais alta cultura do Extremo Oriente, tanto que se tornou o princípio de todos os tipos de arte ou ofício.
...

            O Taoismo é, pois, o original caminho da libertação chinês, que se fundiu com o Budismo indiano Mahaya para produzir o Zen. É um arrancar-se à convenção, uma libertação do poder criativo do te. Qualquer tentativa para descrever e formular em palavras e símbolos (um-de-cada-vez) do pensamento distorcê-lo-á necessariamente. O presente capítulo tê-lo-á feito por certo assemelhar a uma das alternativas filosóficas, “vitalistas” ou “naturalista”, pois os filósofos ocidentais são constantemente embaraçados pela descoberta de que não podem pensar, fora de certas rotas bem marcadas – de que, por muito que tentem, as suas “novas” filosofias resultam no retomar de antigas posições monistas ou pluralistas realistas ou nominalistas, vitalistas ou mecanicistas. Isto porque tais são as únicas alternativas que as convenções do pensamento podem oferecer, e não podem discutir qualquer outra coisa sem a apresentarem nos seus próprios termos. Quando tentamos representar uma terceira dimensão sobre uma superfície bidimensional, ela necessariamente parecerá pertencer mais ou menos às duas alternativas, comprimento e altura. Segundo as palavras de Chuang-tzu:
    
          
Fosse a linguagem adequada, e bastaria a extensão de um dia para expor o Tao. Porque não é adequada, esse tempo é gasto a explicar existências matérias. O Tao é algo para além das experiências materiais. Não pode ser transmitido nem pelas palavras nem pelo silêncio.      

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