Historicamente o Zen pode ser encarado como o produto final de longas tradições na cultura indiana e chinesa, embora seja, atualmente, muito mais chinês que indiano e, desde o século XII, se tenha enraizado profundamente, e de modo extremamente criativo, no Japão. Como fruto dessas grandes culturas, e como exemplo único e particularmente instrutivo de um caminho de libertação, o Zen é uma das mais preciosas dádivas da Ásia ao mundo.
As origens
do Zen são tão Toistas como Budistas
e, sendo seu
aroma tão particularmente
chinês, será talvez melhor começamos
por investigar
a sua ascentralidade
chinesa – ilustrando ao mesmo tempo, com o exemplo do
Taoismo, o
que se entende
por uma caminho
de libertação.
Grande parte da dificuldade e perplexidade que o Zen causa ao estudante ocidental resulta da sua ausência de familiaridade com as vias do pensamento chinês – vias que diferem extraordinariamente das nossas e são, por esse motivo, de especial valor para nós por permitirem alcançar uma perspectiva crítica em relação às nossas próprias idéias. O problema aqui não é simplesmente dominar diferentes idéias diferindo das nossas... como as teorias de Kant diferem das de Descartes, ou as dos Calvinistas diferem dos Católicos. O problema está em apreciar diferenças nas premissas básicas do pensamento e nos próprios métodos de pensar, e são estas tantas vezes esquecidas que as nossas interpretações da filosofia chinesa tendem a tornar-se uma projeção de idéias caracteristicamente ocidentais em terminologia chinesa...inevitável desvantagem de estudar a filosofia asiática através de métodos puramente literários da erudição ocidental, pois as palavras só podem ser comunicativas entre aqueles que partilham de experiências semelhantes.
...A dificuldade não reside tanto na linguagem como nos padrões de pensamento que, até agora, tem parecido inseparáveis do modo acadêmico e científico (ocidentais) de encarar o assunto. A inadequação de tais padrões, face a objetos tais como o Taoismo e o Zen, é largamente responsável pela impressão existente de que o “espírito oriental” é misterioso, irracional e imperscrutável...não há razão de supor que estes assuntos são tão peculiarmente chineses ou japoneses que não tenham ponto de contato com algo da nossa cultura. Embora seja verdade que nenhuma das divisões formais da ciência e do pensamento ocidental correspondem a um caminho de libertação, o maravilhoso estudo de R.H. Blyth, O Zen na Literatura Inglesa, demonstrou claramente que as bases essenciais do Zen são universais.
Pg.23
As
fotografias de jornais e as transmissões de
televisão
constituem outros
exemplos do mesmo processo... Por muito que se assemelhe à
cena
original, é
apenas uma reconstituição da cena em termos de
pontos,
aproximadamente, como as
nossas palavras e pensamentos convencionais são
reconstituições das
experiências vividas, em termos de sinais abstratos. Ainda
mais
semelhante ao
processo mental, é a transmissão, pelas
câmaras de
televisão, de uma cena
natural em termos de uma série linear de impulsos que podem
passar ao longo de
um fio.
Assim,
a comunicação por sinais convencionais deste
tipo,
dá-nos uma abstração, a
tradução no gênero
uma-coisa-por-cada-vez de um
universo em que as coisas estão
a acontecer todas-ao-mesmo-tempo – um universo cuja realidade
concreta escapa sempre
à perfeita descrição nestes termos
abstratos...
O caráter linear, de uma-coisa-de-cada-vez, do discurso e do pensamento é particularmente notável em todas as línguas que utilizam alfabetos, representando a experiência em longas filas de letras. Não é fácil dizer porque devemos nós comunicar com outros (falar) e com nós próprios (pensar) por este método de uma-coisa-de-cada-vez. A própria vida não se processa deste modo embaraçoso e linear, e dificilmente poderiam nossos próprios organismos viver por um momento sequer se tivessem de se controlar, tomando nota de cada respiração , de cada pancada do coração, de cada impulso neural. Mas se nos encontramos na obrigação de encontrar explicações para esta característica do pensamento, o sentido da vista oferece uma analogia sugestiva.
Pg.27
Existe pois uma analogia
– e
talvez mesmo mais que mera analogia – entre visão
central
e o pensamento
consciente, do tipo uma coisa de cada vez, e entre a visão
periférica e o
processo assaz misterioso que nos habilita a regular a
incrível
complexidade
dos nossos corpos, sem que precisemos pensar...
Neste aspecto a linguagem escrita chinesa tem uma ligeira vantagem sobre a nossa, e é talvez sintomática de uma modo diferente de pensar. É também linear, também uma série de abstrações, recolhidas uma de cada vez. Mas os seus sinais escritos estão um pouco mais próximos da vida que as palavras soletradas, pois são essencialmente representações gráficas, retratos, e como diz o provérbio chinês: “Mostrar uma vez, vale mais que descrever cem vezes”...
Pg.28
Ora a tendência
generalizada
do espírito ocidental é para sentir que não
podemos compreender verdadeiramente o que não podemos
representar,
o que
não conseguimos comunicar por meio de sinais lineares
–
pelo pensamento.
Somos como o
“jarrão” que
não consegue aprender uma dança se lhe
não
desenharmos um diagrama dos
passos... Seja pelo que for, não confiamos na
“visão periférica” do nosso
espírito, e não a utilizamos completamente. Para
aprendermos música
restringimos toda uma gama de tons e ritmos a uma
notação
de intervalos, tonais
e rítmicos, fixos – uma
notação incapaz de
representar a música oriental. É
certo que o músico oriental tem um esboço de
notação, mas apenas o utiliza como
auxílio para recordar a melodia. Ele aprende
música ,
não pela leitura de
notas, mas ouvindo as execuções de um mestre,
apanhando-lhe o “jeito”, e
copiando-o, o que o habilita a adquirir requintes tonais e
rítmicos que, no
Ocidente, só encontram paralelo no jazz, que utiliza o mesmo
método de
aproximação.
Longe de
nós
sugerir que os
ocidentais não usem, pura e simplesmente, o
“espírito periférico”. Sendo
humanos, constantemente o utilizamos, e cada artista, cada
operário, cada
atleta, põe em ação m desenvolvimento
específico dos seus poderes. Mas, acadêmica e
filosoficamente não é
respeitável. Mal
começamos ainda a aprender as suas
possibilidades, e
raramente, se não mesmo nunca, nos ocorre que uma das suas
mais
importantes
utilizações é para aquele
“conhecimento da
realidade” que tentamos atingir
através de desajeitados cálculos da teologia,
metafísica e inferência lógica.
Ao encararmos a antiga
sociedade chinesa, encontramos duas tradições
“filosóficas”, representando partes
complementares
– Confucionismo e Taoismo. Em termos gerais, a
primeira trata das convenções
lingüísticas,
éticas, legais e rituais, que
fornecem à sociedade seu sistema de
comunicação.
Por outras palavras, o
Confucionismo preocupa-se com o conhecimento convencional e, sob seus
auspícios, as crianças são educadas de
modo que
suas naturezas, originalmente
indóceis e
fantasiosas, se adaptem ao
leito de
Procrustes (1) da ordem social. O indivíduo defini-se a si
próprio e ao seu
lugar na sociedade, em termos de formulações
confucianas.
Por outro lado, o Taoismo
é,
regra geral, ocupação de homens mais idosos, e
especialmente de homens que se
retiram da vida ativa na comunidade. Este retirar-se da sociedade
é uma espécie
de símbolo exterior de uma libertação
interior dos
laços dos padrões
convencionais de pensamento e conduta, pois o Taoismo ocupa-se do
conhecimento
não convencional, de uma compreensão da vida
obtida
diretamente e não através
dos termos lineares e abstratos do pensamento representacional.
O Confucionismo preside pois à tarefa, socialmente necessária, de obrigar a espontaneidade original da vida a adaptar-se às rígidas regras da convenção – uma tarefa que não só implica conflito e dor, mas também a perda daquela peculiar naturalidade e não-consciência-de-si-próprio, pelas quais são as crianças tão amadas, e que é por vezes readquirida por santos e sábios. A função do Taoismo reside em reparar o inevitável dano causado por tal disciplina, e não só restituir mais ainda desenvolver a espontaneidade original, que é denominada tzu-jan ou “auto-justaposicionismo”... a espontaneidade da criança, tal como tudo que com ela se relaciona, é ainda infantil. A sua educação encoraja lhe a rigidez mas não a espontaneidade. Em determinadas naturezas, o conflito entre convenção social e a espontaneidade reprimida é tão violenta que se manifesta no crime, na insanidade e na neurose, preços pelos quais pagamos o que, por outro lado, representa um indubitável benefício, ou seja, a ordem.
Pg.30
Mas o Taoismo não
deve
de modo algum ser entendido como uma revolução
contra o convencional, embora tenha sido por vezes usado como pretexto
de
revoluções. O Taoismo é um caminho de
libertação, a qual nunca se alcança
por
meio de revoluções, visto ser notório
estabelecerem estas, piores tiranias que
aquelas que destroem. Libertar-se
da convenção não é
expulsa-la
violentamente, mas sim
não ser por ela iludido. É estar apto a
utiliza-la como
instrumento, em vez de
ser por ela usado.
O Ocidente não
possui
qualquer instituição reconhecida que corresponda
ao Taoismo, porque a nossa
tradição espiritual
Hebraico-Cristã identifica o
absoluto
– Deus – a
ordem moral e lógica da
convenção.
Quase se poderia chamar a este fato
uma das mais importantes
catástrofes culturais, porque confere uma excessiva
autoridade
à ordem social,
atraindo precisamente as revoluções contra a
religião e a tradição, tão
características da História ocidental. Uma
coisa é sentir-se o indivíduo em conflito com as
convenções socialmente
sancionadas, mas outra, muito diferente, sentir-se em luta com as
próprias
raízes ... da
vida, com o próprio
Absoluto.
Este ultimo caso alimenta
um sentimento de culpa tão desproporcionado, que
não pode
deixar de redundar na
negação da natureza própria, ou na
rejeição de Deus. Dado que a primeira destas
alternativas é fundamentalmente impossível
– tanto
como mastigarmos nossos
próprios dentes – a segunda torna-se
inevitável,
quando paliativos tais como a
confissão deixam de ser efetivos. Tal como está
na
natureza das revoluções, a
revolução contra Deus dá lugar
à pior das
tiranias, a do estado absolutista –
pior porque não pode sequer perdoar, e porque nada reconhece
fora
dos poderes de
sua jurisdição...
Pg.31
Quando
o trono do Absoluto é deixado vago, o relativo usurpa-o e
comete
a verdadeira
idolatria, a verdadeira indignidade contra Deus – a
absolutização
de um
conceito, de uma abstração convencional. Mas
é
pouco provável que o trono
tivesse chegado a vagar se, em certo sentido, o não
estivesse
já – se a
tradição ocidental tivesse alcançado
algum modo de
apreender diretamente o
Absoluto, fora dos termos da ordem convencional.
Evidentemente,
a própria palavra “Absoluto” nos sugere
algo de
abstrato e conceitual, tal como
“Puro Ser”. Mesmo a nossa ideia de
“espírito” como oposta à
“matéria” parece
ter mais afinidade como o abstrato que como o concreto. Mas no Taoismo,
tal
como em outros caminhos da libertação, o Absoluto
nunca
deve ser confundido cm
o abstrato. Por outro lado, se dizemos que o Tao,
como
é chamada a Realidade fundamental, é mais o
concreto que
o abstrato, pode isso conduzir a mais confusões ainda, visto
estarmos
habituados a associar o concreto com o material, o
fisiológico,
o biológico, e
o natural como coisa distinta do sobrenatural. Porém,
partindo
dos pontos de
vista taoista e budista, continuam estes a ser termos para esferas
convencionais e abstratas de conhecimento.
Pg.32
O
Taoismo é uma
extensão deste
tipo de conhecimento,
uma extensão que nos dá um aspecto muito
diferente de
nós próprios,
relativamente àquilo a que estamos convencionalmente
habituados,
um aspecto que
liberta a mente humana da constritiva
identificação com o
ego abstrato.
Segundo
a tradição, o fundador do Taoismo, Lao-Tzu, foi
um
contemporâneo mais idoso que
Kung Fu Tzu, ou Confúcio, que morreu em 479 A.C. Lao-Tzu tem
sido considerado o
autor do Tao
Te Ching, um pequeno
livro de aforismos, estabelecendo os princípios do Tao e o
seu
poder ou virtude
(Te).
Mas a filosofia tradicional
chinesa atribui tanto o Taoismo como o Confucionismo a uma fonte ainda
mais
antiga, a um trabalho que jazz nos próprios fundamentos do
pensamento e cultura
chineses, escrito entre 3000 e 1200 A.C. É ele o I
Ching, ou Livro das
Mudanças.
O I Ching
é ostensivamente um livro de
adivinhação, Consiste em oráculos
baseados em
sessenta e quatro figuras
abstratas, cada uma das quais, composta por seis linhas. As linhas
são de duas
espécies – divididas (negativo) e não
divididas
(positivo) – e as figuras de
seis linhas, ou hexagramas, julga-se terem sido baseadas nos
vários modos como
a concha de uma tartaruga estala, pela ação do
calor.
Esta crença reporta-se a
um antigo método de adivinhação em que
o adivinho
abria um furo na carapaça de
uma tartaruga, a aquecia, e predizia depois o futuro baseado nas fendas
da
carapaça assim formadas... um interprete do I
Ching poderia discutir
energicamente os méritos relativos de
nosso modo de
tomar decisões importantes. Julgamos tomar
decisões
racionais porque as
baseamos numa compilação de dados acerca do
assunto em
questão. Não dependemos
de ninharias tão insignificantes como o lançar de
uma
moeda ao ar, ou os
desenhos formados pelas folhas de chá ou pelas fendas numa
carapaça.
Por
outras palavras, o método “rigorosamente
científico” de predizer o futuro
apenas pode ser aplicado em casos especiais – quando
não
se requer uma ação
imediata, quando os fatores em causa são, na maioria,
mecânicos, ou em
circunstâncias tão restritas que se tornam
triviais. A
maior parte de nossas
decisões depende do “palpite”
– por outras
palavras, da “visão
periférica” da
mente. Assim,
a segurança das nossas
decisões
repousa fundamentalmente sobre a nossa capacidade de
“sentir” a situação, sobre
o grau de desenvolvimento da “visão
periférica”.
Todo
intérprete do I
Ching o sabe. Ele
sabe que o livro, em si, não contém nenhuma
ciência
exata, mas antes um
instrumento assaz útil, que será eficaz em suas
mãos se ele tiver uma boa
“intuição”, ou se, como ele
diz, estiver
“no Tao”. Por isso ninguém consulta o
oráculo sem uma preparação adequada,
sem passar,
calma e meticulosamente,
através dos rituais prescritos, de modo a levar a mente
até o estado de
tranquilidade em que se sente que a
“intuição” age com maior
eficácia.
Dir-se-ia
pois que, se as origens do Taoismo devem ser fundadas no I
Ching, não o
serão tanto no texto do próprio
livro como no modo
em que foi usado e nos pressupostos que lhe servem de base.
Assim
se começam a revelar os princípios do Taoismo. Em
primeiro lugar, vem o Tao
– o
“processo” indefinível,
concreto, do mundo, o caminho da vida. A palavra chinesa significa
originariamente um caminho ou estrada, e algumas vezes
“falar”, pelo que a
primeira linha do Tai
Te Ching contém
um trocadilho sobre os dois significados:
À
direita e à esquerda.
Tudo,
para existir, depende dele,
e
nada ela abandona.
Não
invoca direitos sobre o que realiza.
Todas
as coisas ama e alimenta,
Mas
não invoca isso para delas ser senhor.
faz
o possível para o praticar.
Quando
o homem médio ouve falar do Tao,
Uma
vezes o guarda outras vezes o perde.
Quando
o homem inferior ouve falar do Tao,
ri
dele em altas gargalhadas.
Se
não rir, é que não é o Tao
Vimos
que o I Ching
tinha dado à
mentalidade chinesa alguma experiência de chegar
espontaneamente
a decisões que
são eficazes conforme o grau em que se sabe como deixar a
mente
á vontade,
confiando em que trabalhe por si própria. Isto é wu-wei,
dado que wu
significa “não” e wei
significa
“ação”,
“construir”,
“fazer”, “esforço”,
“tensão” ou “tarefa”.
Para voltarmos ao exemplo da
visão ocular, a
visão periférica funciona mais eficazmente
– como
no escuro – quando vemos pelo
canto do olho e não encaramos diretamente as coisas. De modo
semelhante, quando
pretendemos ver os pormenores de um objeto longínquo, por
exemplo um relógio,
os olhos devem estar descontraídos sem fixar sem tentar
ver. De
igual modo,
por muito que esforcemos os músculos da boca e da
língua,
Mas
quando aprendemos a dar demasiada fé à
visão
central, à aguda luz incidente dos
olhos e da mente, não podemos readquirir os poderes da
visão periférica, se não
descontrairmos primeiro o tipo de olhar agudo e fixo... Não
se
trata apenas de
uma tranquilidade da mente. Segundo as palavras de Chuang-tzu:
“o
homem
perfeito usa a sua mente como um espelho. Ela nada aprisiona e nada
recusa.
Recebe mas não conserva”. Quase se poderia dizer
que a
mente se “entorpece” um
pouco, a fim de compensar uma claridade demasiado viva...
e o povo terá um
centuplicado
benefício.
Suprime
“humanidade”; abandona a
justiça,
e o
povo terá de novo
amor pelo semelhante.
Suprime a esperteza; abandona
o
utilitário,
e não
haverá ladrões nem
salteadores...
Torna-te desafetado;
Estima a sinceridade!
Minimiza o que é
pessoal;
Reduz
os desejos.
A
ideia não é reduzir a mente humana a uma imbecil
vacuidade, mas trazer de novo
à cena a sua inata e espontânea
inteligência,
usando-a sem a forçar. É
fundamental tanto para o pensamento taoista como o confucionista, que
se confie
no homem natural e, segundo seu ponto de vista, daí resulta
que
a desconfiança
ocidental em relação à natureza humana
–
quer teológica, quer tecnológica –
é
uma espécie de esquizofrenia. Segundo este modo de ver,
é
impossível, seja a
quem for, acreditar-se inatamente maligno sem desacreditar essa mesma
crença,
dado que todas as noções de uma mente pervertida
A
arte de deixar a mente agir sozinha é objeto de uma
vívida descrição por parte
de outro autor taoísta, Lieh-Tzu (aprox.. 398 A.C.),
célebre pelo misterioso
poder de ser capaz de cavalgar no vento. Refere-se a isto, sem
dúvida, à
peculiar sensação de “caminhar no
ar” que
aparece quando pela primeira vez a
mente se liberta. Diz-se que, certa vez, quando perguntaram ao
Professor D.T.
Suzuki o que se sentia ao atingir o satori, a experiência Zen
do
“acordar”, ele
respondeu: “Exatamente como qualquer outra vulgar
experiência do dia a dia, só
que duas polegadas acima do solo!”.
Ao
fim de cinco anos houvera uma mudança; a minha mente
refletia
sobre o certo e o
errado, e meus lábios falavam de lucros e perdas.
Então,
pela primeira vez,
afrouxou a severidade de seu semblante e sorriu.
Ao
fim de sete anos houve outra mudança. Deixei que a minha
mente
refletisse no
que lhe aprouvesse, mas ela deixou de se preocupar como o certo e o
errado.
Deixei que meus lábios pronunciassem o que lhes apetecesse,
mas
eles deixaram
de falar em lucros e perdas, não tinha eu conhecimento,
tanto no
que a mim se
referia como no que dizia respeito aos outros... O interno e o externo
tinham
se fundido na unidade. Daí em diante, não havia
já
distinção entreolho e
ouvido, ouvido e nariz, nariz e boca; todos eram o mesmo.
Várias
passagens dos textos taoistas sugerem que a
“não-mente” é o emprego total
da
mente do mesmo modo pelo qual usamos os olhos ao pousá-los
sobre
vários objetos
mas
Este
termo é tão importante para
compreensão do Zen que
será necessário fazer uma
tentativa para explicar o que o Taoismo, e o pensamento
chinês em
geral, por
ele entendem. Traduzimo-lo geralmente por “mente”
ou
“coração”, mas nenhuma
destas palavras é satisfatória.
A dificuldade das nossas
traduções
reside
em ser “mente” demasiado intelectual, demasiado
cortical,
enquanto que
“coração” no seu sentido
corrente é
demasiado emocional – mesmo sentimental.
Além disso, hsin
não é sempre
usado
com o mesmo exato sentido. Por vezes utiliza-se relativamente a uma
obstrução
que deve ser removida, como em wu-hsin,
“não-mente”. Porém, outras
vezes, é
utilizado num sentido quase sinônimo do
Tao. Este encontra-se principalmente na literatura Zen, que abunda em
frases
como “mente original” (pen hsin),
“mente
Buda” (fu
hsin), ou
“fé na
mente” (hsin
hsin). Esta
contradição aparente resolve-se a partir do
princípio de que “a
verdadeira mente não é mente”, o que
significa que hsin
é verdadeiro, está a funcionar bem,
quando funciona como se
não estivesse presente. Do mesmo modo, os olhos
estão
a ver bem quando não
se veem a si próprios, em termos de pontos ou manchas no ar.
Tudo
bem considerado, dir-se-ia que hsin
significa
a totalidade do nosso funcionamento psíquico e, mais
especificamente, o centro
deste funcionamento, que é associado ao ponto central da
parte
superior do
corpo... O
ponto importante está em
que, de acordo tanto com o Taoismo como com o Zen, o centro de
atividade da
mente não reside no processo consciente de pensar, no ego.
Quando
um homem aprendeu a deixar a sua mente à vontade, a fim de
que
funcione do modo
integrado e espontâneo que lhe é natural,
começa
ele a apresentar o especial
tipo de “virtude” ou “poder”
chamado te.
Não significa isto virtude no sentido corrente de
retidão
moral, mas no sentido
mais antigo de eficácia, como quando fala das virtudes
curativas
de uma planta.
e assim tem te.
Te inferior não
deixa livre o te,
e
assim não é te.
Te superior
é não-ativo (wu-wei)
e
sem
fim definido.
Te inferior
é ático e tem um fim.
Quando
os Confucionistas prescreveram uma virtude que dependia da
observância
artificial de regras e preceitos, os Taoistas fizeram notar que uma tal
virtude
era convencional e não genuína. Chuang-tzu
escreveu o
seguinte diálogo
imaginário entre Confúcio e Lao-Tzu:
“Diz-me”,
inquiriu Lao-Tzu, “em que consiste a caridade e o dever para
com
o nosso
vizinho?”
“Consistem”,
respondeu Confúcio, “numa capacidade de nos
regozijarmos
em todas as coisas; no
amor universal, sem o elemento da própria pessoa.
São
estas as características
da caridade e do dever para com o nosso vizinho.”
“Que
baralhada!” “Não é o amor
universal
contradição de si próprio?
Não é a
tua
eliminação da própria pessoa uma
manifestação positiva da própria
pessoa”?
... aí
está o universo, cuja regularidade é incessante;
aí estão o sol e a lua, cujo
brilho é incessante; aí estão as
estrelas... ai
estão as árvores e os arbustos,
crescendo para o alto sem exceção. Sê
como estes:
segue o Tao, e serás
perfeito. Pois para que estas vãs pesquisas da caridade e do
dever para com o
nosso vizinho, como quem batesse um tambor ao procurar um fugitivo. Ai
de nós,
senhor, que muita confusão trouxeste a mente do
homem.”
Pg.46
A
crítica taoísta da virtude convencional
não se
aplica apenas à esfera moral mas
também às artes, ofícios e
negócios.
Segundo Chuang-tzu:
Eis
porque “o sábio faz provisões para o
estomago e
não para os olhos”, ou seja, avalia
através do conteúdo concreto da
experiência, e não pela sua conformidade com
padrões puramente teóricos.
Até
que, de brincadeira,
um sapo
Disse,
“ouve, qual é a perna que primeiro
moves?”
Isto
tanto lhe trabalhou na mente,
Que
se ficou distraída num sulco,
Pensando
em como correr.
...
O
Taoismo é, pois, o original caminho da
libertação chinês, que se fundiu com o
Budismo
indiano Mahaya para produzir o
Zen. É
um arrancar-se à
convenção,
uma libertação do poder criativo do te.
Qualquer tentativa para descrever e formular em palavras e
símbolos
(um-de-cada-vez) do pensamento distorcê-lo-á
necessariamente. O presente
capítulo tê-lo-á feito por certo
assemelhar a uma
das alternativas filosóficas,
“vitalistas” ou “naturalista”,
pois os
filósofos ocidentais são constantemente
embaraçados pela descoberta de que não podem
pensar, fora
de certas rotas bem
marcadas – de que, por muito que tentem,
as suas
“novas” filosofias
resultam no retomar de antigas posições monistas
ou
pluralistas realistas ou
nominalistas, vitalistas ou mecanicistas. Isto porque tais
são
as únicas
alternativas que as convenções do pensamento
podem
oferecer, e não podem
discutir qualquer outra coisa sem a apresentarem nos seus
próprios termos.
Quando tentamos representar uma terceira dimensão sobre uma
superfície
bidimensional, ela necessariamente parecerá pertencer mais
ou
menos às duas
alternativas, comprimento e altura. Segundo as palavras de Chuang-tzu:
Fosse
a
linguagem adequada, e bastaria a extensão de
um dia para expor o Tao. Porque não é adequada,
esse
tempo é gasto a explicar
existências matérias. O Tao é algo para
além
das experiências materiais. Não
pode ser transmitido nem pelas palavras nem pelo silêncio.
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