Watts A.W. 
O Budismo Zem
Primeira Parte – Fundamentos e História
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2 – As Origens do Budismo

A civilização chinesa contava já, pelo menos, dois mil anos, quando encontrou o Budismo pela primeira vez. A nova filosofia entrou pois numa cultura solidamente estabelecida, na qual dificilmente viria a ser aceita sem importantes adaptações à mentalidade chinesa, embora existissem algumas semelhanças entre o Taoismo e o Budismo, tão fortes (as semelhanças!) que têm levantado especulações sobre se não teria havido contatos entre ambos muito mais cedo que se supõe.  A China absorveu o Budismo tal como tem absorvido tantas outras influências externas – não só filosóficas e idéias, mas também populações alheias e invasores. Sem dúvida que tal se deve à extraordinária estabilidade e maturidade que os chineses  colheram do Confucionismo. Razoável, não fanático, humanista, o Confucionismo é um dos mais maleáveis padrões de convenção social que o mundo tem conhecido. Reunido à atitude “deixar ficar o que está suficientemente bem” do Taoismo, alimentou um tipo de mentalidade suave e assaz condescendente que, quando absorveu o Budismo, fez muito para o tornar mais  ‘prático ‘. Significa isto, que fez do Budismo um caminho de vida possível para seres humanos, para gente com família, com seu trabalho de cada dia, e dotada de instintos e paixões normais.      

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Era princípio básico do Confucionismo que “é o homem que torna a verdade grande, não a verdade que torna o homem grande”, razão pela qual o “humanitarismo” ou “cordialidade humana” (jen) foi sempre considerado superior à “retidão” (i), dado que o próprio homem é maior que qualquer idéia que possa inventar Alturas há em que as paixões dos homens são muito mais dignas de confiança que os seus princípios. Dado que os princípios, ou ideologias, opostos são irreconciliáveis, as guerras travadas com base no princípio são guerras de aniquilação mútua. Mas as guerras travadas por simples ambição são muito menos destrutivas, pois o agressor terá o cuidado de não destruir aquilo que luta para conquistar. Homens razoáveis – isto é, humanos – serão sempre capazes de aceitar um compromisso; mas os homens que se desumanizaram ao tornarem-se adoradores de uma idéia ou ideal, são fanáticos cuja devoção por abstrações os tornam inimigos da vida.   

Modificado por tais atitudes, o Budismo do Extremo Oriente é muito mais agradável e “de acordo com a natureza” que os seus similares da Índia e do Tibet, cujos ideais de vida parecem ser por vezes sobre-humanos, mais próprios de anjos que de homens. Mas ainda assim, todas as formas de Budismo se dirigem para o Meio Caminho entre os extremos do anjo (deva) e do demônio (preta), do ascético e do sensualista, e afirmam que o supremo “acordar” ou estado de Buda só pode ser atingido a partir do estado humano.

Algumas sérias dificuldades se nos deparam ao pretendermos fazer um relato historicamente preciso do Budismo Indiano, bem como de toda tradição filosófica de onde surgiu... antes de  tentarmos descrever o Budismo indiano, devem ser mencionadas algumas dessas dificuldades.

A primeira e a mais séria de todas, reside no problema de interpretar os textos em Sâncristo e Pali, nos quais se preserva a antiga lenda indiana. É isso particularmente

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 verdade no caso do Sâncristo, a linguagem sagrada da Índia, e mais particularmente da forma de sâncristo usada no período Védico. Tanto os eruditos ocidentais como os indianos têm incertezas quanto à sua exata interpretação...e se admite agora conter uma grande parte de trabalho baseado em conjecturas...

A segunda é ser extremamente difícil descobrir qual foi a forma original do Budismo. Há dois conjuntos de escrituras Budistas: o Cânone Pali de Theravada ou Escola Budista do Sul, que floresce no Ceilão, em Burma e na Tailândia, e o Cânone Sâncristo-Tibetano-Chinês de Mahayana, ou Escola do Norte. Segundo o Geral consenso dos eruditos, O Cânone Pali é, geralmente falando, o mais antigo dos dois, e os sutras (assim são chamados os textos sagrados do ano 100 A.C.). Contudo, a forma literária do Cânone Pali não sugere que ele represente as próprias palavras de Gautama o Buda. Se os Upanichades são característicos do estilo de discurso de um mestre indiano entre os anos 800 e 300 A.C., apresentam pouca semelhança com o repetitivo e enfadonho .. e escolástico da maioria das escrituras Budistas... Tal como sucede com os ícones russos, a pintura original já quase se perdeu de vista sob a camada de pedrarias e oiro que a cobrem.

A terceira é nunca a tradição hindu-budista ter possuído o sentido histórico da tradição hebraico cristã, de modo que

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há poucas ou nenhumas pistas que indiquem a data de um dado texto. As escrituras eram transmitidas pela tradição oral, através de um interminável período de tempo, antes de serem postas por escrito, e é muito possível que as referências históricas fossem modificadas de modo a adaptarem-se aos tempos, à medida que a forma oral era transmitida. Alem disso, um monge budista escrevendo no ano 200 A.C. não teria qualquer dúvida em atribuir ao Buda as suas próprias palavras, desde que sentisse sinceramente serem elas uma expressão, não da sua opinião pessoal mas do supra pessoal estado de vigília que tinha alcançado. Atribuiria as palavras ao Buda, como pessoa falando através de um corpo antes espiritual que material. 

        O perigo da erudição reside sempre em que, na especialização extrema, pode não ser capaz de ver a floresta por causa das árvores. Mas o problema de alcançar uma idéia do que era o pensamento indiano no tempo do Buda, seis séculos antes de Cristo, não poderá ser solucionado apenas através de um cuidadoso trabalho de reconstituição – por muito necessário que este seja. Há, no entanto, suficiente informação de confiança, a sugerir a grandiosa e belamente ordenada forma do Hinduismo Upanichádico, se o não lermos com o nariz em cima das folhas.  
Fundamental para a vida e o pensamento da Índia, desde os mais antigos tempos, é o grande tema mitológico da atma-yajnao ato de auto sacrifício pelo qual Deus dá origem ao mundo, e pelo qual os homens, seguindo o modelo divino, se reintegram em Deus. O ato pelo qual o mundo é criado é o mesmo pelo qual é consumado – a entrega da própria vida – como se todo o processo do universo fosse o tipo de jogo em que é necessário passar a bola a outro assim que é recebida. O mito básico do Hinduismo é pois que o mundo é Deus brincando às escondidas consigo próprio. Como Prajapati, Visnu ou Brâmane, o Senhor, sob muitos nomes, cria o mundo através de um ato de auto-desmembramento ou auto-esquecimento, através do qual o Um se torna Muitos, e o único ator representa inúmeros papéis. No final, chega de novo a si próprio mas para recomeçar,

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uma vez mais o drama – o Um morrendo em Muitos, e os Muitos morrendo em UM.

       Mil cabeças tem Purucha, e mil olhos, e mil pés.
Por toda a parte ocupa a terra, enche um espaço largo de dez dedos.
É Purucha tudo o que tem sido, tudo o que virá a ser;
Senhor da imortalidade que se acrescenta ainda pelo alimento.
Quão poderosa é sua grandeza; maior ainda é, na verdade, Purucha.  
Todas as criaturas são a quarta parte dele, três quartos a vida eterna nos céus...  
Quando os Deuses preparam o sacrifício tendo purucha como sua oferenda,
O óleo foi a primavera, a dádiva sagrada o outono; a madeira era o verão.
Daquele grande sacrifício geral foi recolhida a escorrente gordura.
Ela formou as criaturas do ar, e os animais, bravios ou domados...
 Ao dividirem Purucha, quantas porções fizeram?
Que chamam á sua boca e braços? Que chamam às suas coxas e pés?
A casta Brâmane era a sua boca, dos seus dois braços foi feita Rajanya, a casta Kchatriya
As suas coxas fizeram-se Vaichya, de seus pés foi produzido o Chudra. 
A lua foi gerada da sua mente e o sol nascido dos seus olhos;
Indra e Agni nasceram da sua boca, e Vayu do seu sopro.
Do seu umbigo brotou o ar intermédio; da sua cabeça foi construído o céu;
Terra dos seus pés, e de sua orelha as regiões. Assim formaram eles os mundos.(1)
 

(1)  
Rigveda... Purucha é “a Pessoa”, isto é, a consciência original por trás do mundo.

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 As mil cabeças, olhos e pés de Purucha são os membros dos homens e de outros seres, sendo que Aquilo que conhece todos e cada um dos próprios indivíduos é o próprio Deus o atman  ou Ser do mundo. Cada vida é um papel ou interpretação que se absorve a mente de Deus, um pouco como um ator se absorve de ser Hamlet, esquecendo-se que, na vida real, é o Sr. Silva. Pelo ato de auto-abandonamento Deus torna-se todos os seres mas, ao mesmo tempo, continua a ser Deus. “Todas as criaturas são a quarta parte Dele, três quartos a vida eterna nos céus”. Porque Deus divide-se na representação, no fictício, mas mantêm-se indiviso na realidade. Assim, quando a peça chega ao final, a consciência individualizada desperta para se descobrir divina.

No princípio este mundo era Atman (o Ser), solitário na forma de Purucha. Olhando em redor nada mais viu além de si próprio.  Primeiro disse, “Eu sou”. Daí veio a palavra “Eu”. Por isso ainda hoje, quando alguém é interpelado, preimeiro responde simplesmente, “Sou eu”, e diz depois o nome que tiver.

Em toda a parte Aquilo tem mãos e pés;
            Em toda a parte olhos, cabeças e rostos;
            Em toda a parte do mundo ouve;
            E todas as coisas abarca.

 É importante recordar essa representação do mundo como o drama (lila) de Deus, é mitológica na sua forma...imperfeito tipo de panteísmo, com que se confunde, geral e erroneamente, a filosofia Hindu. A idéia de cada homem, cada coisa, como um papel que o Purucha representa no estado de auto-esquecimento, não deve pois ser confundida com uma declaração de fato, lógica ou científica. A forma da declaração é poética, não lógica. (vale o mesmo para os salmos do Rei Davi). Segundo as palavras do Mundaka Upanichade.

Em verdade este atman (Próprio Ser) – dizem os poetas – viaja neste mundo de corpo para corpo.

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A filosofia Hindu não cometeu o erro de imaginar que se pode fazer uma exposição informativa, fatual e positiva, sobre a suprema realidade...

Qualquer declaração positiva acerca de coisas supremas deve ser feita sob a sugestiva forma de mito, de poesia, pois neste domínio a forma de discurso direta e indicativa apenas pode dize, “neti, neti” (“não, não”), posto que aquilo que pode ser descrito e categorizado pertence sempre, forçosamente, ao domínio convencional.

A mitologia Hindu elabora o tema do drama divino numa escala fabulosa, compreendendo não só colossais efeitos de tempo e de espaço, mas também os últimos extremos do prazer e da dor, de virtude e depravação. O íntimo Ser do santo e do sábio é tanto o Velado Rosto de Deus como o íntimo Ser do debochado, do covarde, do lunático, dos próprios demônios. Os opostos (dvandra) de luz e escuridão são elementos essenciais do jogo, pois embora o rosto de Deus se identifique com Verdade (sat), Consciência (chit), e Bem-aventurança (ananda), o lado escuro da vida tem sua parte integrante no jogo tal como qualquer drama deve ter seu vilão para despedaçar o status quo, tal como as cartas devem ser baralhadas, lançadas no caos, a fim de que se processe um evolução significativa no jogo. Para o pensamento Hindu não existe o problema do Mal. O Mundo convencional e relativo é, necessariamente, um mundo de opostos. Afastada da escuridão, a luz é inconcebível; a ordem não tem sentido sem a desordem; e, do mesmo modo, alto sem baixo, som sem silêncio, prazer sem dor.

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     De acordo com o mito, o drama divino prossegue através de infindáveis ciclos de tempo, através de períodos de manifestação e desaparecimento dos mundos, medidos em unidades de kalpas, sendo o kalpa um espaço de 4.320.000.000 de anos. A partir de um ponto de vista humano uma tal concepção representa terrível monotonia, dado que continua, sem qualquer finalidade, por todo o sempre. Porém, segundo o ponto de vista divino, tem todo o fascínio dos repetitivos jogos de crianças, que continuam infinitamente porque o tempo foi esquecido, assim se reduzindo a um único instante de maravilha.

       O mito que atrás descrevemos não é a expressão de uma filosofia formal, mas de uma experiência (pessoal intransferível) ou estado de consciência, chamado  mokcha ou “libertação”. No conjunto, é mais seguro dizermos que a filosofia indiana é, primeiramente, esta experiência; só muito mais secundariamente é ela um sistema de idéias que tenta traduzir a experiência para linguagem convencional. Assim, basicamente, a filosofia só se torna inteligível ao compartilhar a experiência que consiste no mesmo tipo de conhecimento não convencional, encontrado no Taoismo. É também chamado atma-jnana (auto conhecimento)  ou atma-bodha (auto despertar), visto que pode ser considerada como a descoberta de quem, ou o que eu sou, quando já não me identifico com qualquer função ou definição convencional de pessoa. A filosofia indiana não descreve o conteúdo desta descoberta senão em termos mitológicos, usando a frase “Eu sou Brâmane” (aham brahman) ou “Aquilo tu és” (tat tvam asi) para sugerir que o auto-conhecimento é uma compreensão da identidade original com Deus.

        Mas isso não implica o que “proclamando-se Deus” significa um contexto hebraico cristão, onde a linguagem mítica geralmente se confunde com a linguagem factual pelo que não existe uma distinção clara entre Deus, tal como é descrito em termos de pensamento convencional, e Deus tal como ele é na realidade...

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Além disso, embora se diga que Brâmane se “conhece” a si próprio, este conhecimento não é produto de informação, um conhecimento como o que se tem de objetos, distintos de um sujeito. Segundo as palavras de Shankara,

  Pois ele é o conhecedor, e o conhecedor pode apenas conhecer outras coisas, mas não pode tornar-se Ele próprio objeto do Seu pessoal conhecimento, tal como o fogo pode queimar outras coisas mas não pode queimar-se a si próprio.(nota de rodapé 4)... a luz não necessita brilhar sobre si própria pois já é luminosa, também não vantagem ou sentido em Brâmane ser objeto de seu próprio conhecimento.

Para a mentalidade ocidental o quebra-cabeças da filosofia indiana reside em ter ela tanto a dizer sobre o que  a experiência do mokcha não é, e pouco ou nada, sobre o que ela é. Isto é naturalmente desorientador, pois que se a experiência não têm realmente conteúdo, ou se é tão falha de relações com as coisas que consideramos importantes, como se poderá explicar a imensa estima em que é tida no esquema de vida indiano?

Mesmo ao nível convencional, por certo que é fácil compreender que o conhecimento de que “não é assim”,

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resulta muitas vezes tão importante como saber o que é... a função do conhecimento negativo não deixa de ter parecências com as utilizações do espaço – a página vazia sobre a qual se podem escrever palavras, o recipiente vazio onde se pode deitar líquido, a janela vazia através da qual pode entrar a luz, e o tubo vazio através do qual a água pode correr. Obviamente, o valor do vazio repousa nos movimentos que permite ou na substância que delimita e contém. Mas o vazio deve existir primeiro. É por isso que a filosofia indiana se concentra na negação, em libertar a mente dos conceitos de Verdade.... Tal como os Hebreus não permitiam que se fizesse uma imagem de Deus na madeira ou na pedra,  os Hindus não admitem uma imagem do pensamento – a não ser uma tão obviamente mitológica que não possa ser tomada pela realidade.

            Deste modo, a disciplina prática (sadhana) do caminho de libertação é um progressivo desembaraçar o Próprio Ser (atman) de cada um, de qualquer identificação. É compreender que não sou esse corpo, estas sensações, estes sentimentos, estes pensamentos, esta consciência. A realidade básica da minha vida não é objeto concebível algum. Fundamentalmente, nem mesmo deve ser identificado com qualquer idéia, como sejam Deus ou atman....

            O atman é para nossa consciência total o que a cabeça é para o sentido da vista – nem luz nem escuridão, nem

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cheio nem vazio, apenas um inconcebível para além. No momento que as últimas identificações do Próprio Ser com qualquer objeto ou conceito cessaram, no estado a que se chama nirvikalpa ou “sem concepção”, brota das suas desconhecidas profundidades o estado de consciência a que se chama divino, o conhecimento do Brâmane.

          Traduzido para linguagem convencional e – devemos repeti-lo – mito-poética, o conhecimento de Brâmane é representado como a descoberta de que este mundo, que parecia ser Muitos, é na verdade Um, que “tudo é Brâmane” e que “toda a dualidade é falsamente imaginada”...

           Mokcha é também entendido como libertação de maya – uma das mais importantes palavras na filosofia indiana, tanto Hindu como Budista, pois o múltiplo mundo dos fatos e acontecimentos é considerado como sendo maya, geralmente entendido como uma ilusão que oculta a única e subjacente realidade de Brâmane.   Dá-nos isso a impressão de que mokcha  é um estado de consciência em que todo o variado mundo da natureza desaparece do campo da visão fundido num oceano, sem margens, de espaço vagamente luminoso. Uma tal impressão deverá ser imediatamente recusada, pois implica uma dualidade, uma incompatibilidade entre Brâmane e Maya, o que vem contra o princípio da filosofia Upanichádica. Porque Brâmane nãoé Um como oposto a Muitos. Não é simples em oposição ao complexo. Brâmane é sem dualidade (advaita), ou seja, sem qualquer oposto, dado que Brâmane não está em qualquer classe ou, o mesmo é dize-lo, fora de qualquer classe.

            Ora, a classificação é precisamente maya. A palavra deriva da raiz Sânscrita matr-, “medir, formar, construir ou

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 esboçar um plano”, a mesma raiz de onde obemos palavras greco-latinas tais como metro, matriz, material e matéria. O processo fundamental da medida é a divisão, quer seja desenhando uma linha com o dedo, delimitando círculos com o palmo ou com compassos, ou distribuindo grãos e líquidos por medidas. Assim a raiz Sânscrita dva- de onde nos vem a palavra “dividir”, é também raiz do latim duo (dois) e do inglês (e Português) “dual”.

            Portanto, dizer que o mundo dos fatos e acontecimentos é maya significa que os fatos e acontecimentos são antes termos de medida que realidades da natureza. Devemos, contudo, expandir o conceito de medida até a inclusão do estabelecimento de limites de qualquer espécie, quer pela classificação descritiva quer pelo enquadramento seletivo. Ser-nos-á assim mais fácil ver que os fatos e acontecimentos são tão abstratos como linhas de latitude, ou como decímetros e centímetros. Considere-se por um momento que é impossível isolar, por si só, um único fato. Os fatos vêem, pelo menos, aos pares, pois que um único corpo é inconcebível se o separarmos do espaço que ocupa. Definição, estabelecimento de limites, delineamento – são estes sempre atos de divisão e portanto dualidade, dado que assim que um limite é definido logo apresenta dois lados.

            Este ponto de vista é um tanto assustador, e mesmo bastante difícil de compreender, para aqueles de há muito habituados a pensar que coisas, fatos e acontecimentos, são os próprios blocos constituintes do mundo, a mais sólida das sólidas realidades. Contudo, uma compreensão capaz da doutrina maya é um dos mais essenciais requisitos prévios para estudo do Hinduísmo e do Budismo. E ao tentar apreender seu significado deverão ser postas de lado as várias filosofias “idealistas” do Ocidente com que tantas vezes é confundida – mesmo pelos modernos Vedantistas Indianos. Porque o mundo não é uma ilusão da mente no sentido de – aos olhos do homem libertado (juvanmukta) – nada se senão um vácuo sem caminhos. Ele vê o mundo que nós vemos; mas não o marca, não o mede, não o divide do mesmo modo. Não o encara como real ou concretamente

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 dividido em coisas e acontecimentos separados. Ele vê que a pele tanto pode ser encarada como aquilo que nos une ao que nos rodeia, como o que dele nos separa. Ele vê, além disso, que a pela só será encarada como aquilo que une se foi primeiramente considerada como o que separa, ou vice-versa.

            Portanto o seu ponto de vista não é monístico. Ele não pensa que todas as coisas são na realidade Uma porque, concretamente falando, nunca houve quaisquer “coisas” para serem consideradas Uma. Unir é tanto maya como separar. Por esta razão, tanto os Hindus como os Budistas preferem falar da realidade “não-dual” do que como “uma”, dado que o conceito de um estará sempre em relação com o de muitos. A doutrina de maya é ppois uma doutrina de relatividade. É dizer que as coisas, fatos e acontecimentos são delineados, não pela natureza, mas pela descrição humana, e que o modo pelo qual os descrevemos (ou dividimos) é relativo aos nossos variáveis pontos de vista.

...é fácil verificar o caráter convencional das coisas. Regra geral, um organismo humano é encarado como uma única coisa, embora sob o ponto de vista fisiológico seja tantas coisas quanto as suas partes ou órgãos, e sob o ponto de vista sociológico seja meramente parte de algo muito mais vasto a que chamamos grupo.

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             Por certo que o mundo da natureza abunda em superfícies e linhas, em áreas de densidade e vacuidade, que utilizamos para marcar os limites dos acontecimentos e coisas. Mas aqui, uma vez mais, a doutrina maya sustenta que estas formas (rupa) não têm “ser próprio” ou natureza própria, não existem por direito próprio mas apenas em relação umas com as outras, tal como sólido apenas pode ser distinguido relativamente a um determinado espaço. Neste sentido, o sólido e o espaço; o som e o silêncio, o existente e o inexistente, a personagem e a cena, são inseparáveis, independentes, ou “mutuamente originantes”, só através de maya, ou divisão convencional  poderão ser considerados separadamente.

            A filosofia indiana também considera rupa, ou forma, como maya, por ser impermanente. Na verdade, quando os textos Hindus ou Budistas falam do caráter “vazio” ou “ilusório” do mundo visível da natureza – como distinto do mundo convencional das coisas – referem-se precisamente à impermanência das suas formas. Forma é fluxo, e portanto maya, no sentido, um pouco mais lato, de não se poder anotar com precisão ou apreender. A forma é maya quando a mente tenta compreende-la e controla-la nas categorias fixas do pensamento, isto é, por meio de nomes (nama) e palavras, pois tais são precisamente os substantivos e verbos por meios dos quais as categorias abstratas e conceituais de coisas e acontecimentos são designadas.

            Para servir a este propósito, nomes e termos devem necessariamente ser fixos e definitivos como quaisquer outras unidades de medida. Porém o seu emprego é – até certo ponto – tão satisfatório que o homem está sempre em perigo de confundir as suas medidas como o mundo assim medido...

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             Maya é pois geralmente equiparado como nama-rupa ou “nome-e-forma”, com a tentativa de mente para aprisionar as formas fluidas da natureza na rede de suas classes fixas...O mundo formal torna-se o mundo real no momento em que deixa de estar aprisionado, no momento em que deixamos de opor resistência à sua imutável fluidez. Daí advém que a própria transitoriedade do mundo constitui o sinal de sua divindade, da sua real identidade com a indivisível e incomensurável infinidade de Brâmane.

            É por isso que a insistência Hindu-Budista sobre a impermanência do mundo, não constitui a doutrina pessimista e niilista que os críticos ocidentais normalmente crêem que ela seja. A transitoriedade só é depre      ssiva para a mente que insiste na tentativa de aprisionar (apreender a realidade?). Mas para a mente que se deixa levar na corrente fluida da mudança, para mente que se torna, segundo a imagem Budista Zen, como uma bola  vogando no rio que desce o monte, a sensação de transitoriedade ou vazio transforma-se numa espécie de êxtase. Será talvez esta a razão porque, quer no Oriente que no Ocidente, a impermanência é tantas vezes o tema da mais profunda e comovente poesia – de tal modo o espelendor da mudança brilha e transparece mesmo quando o poeta mais parece ressentir-se dela.  

Amanhã, e amanhã, e amanhã,  
Rasteja no seu mesquinho passo de dia para dia  
Até a última sílaba do tempo recordado,  
E todos nossos ontens alumiaram aos loucos  
O caminho para o pó da morte. Apaga-te, minúscula vela!

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A vida nada mais é que a sombra errante, miserável ator  
Que se pavoneia e desperdiça sua hora sobre o palco  
E não mais é ouvido: é uma história  
Contada por um idiota, cheia de som e fúria,  
E sem sentido algum.

         Exposta deste modo... não parece assim tão mau, ao fim e ao cabo. Em resumo, pois, a doutrina maya aponta, em primeiro lugar, a impossibilidade de aprisionar o mundo real na rede de palavras e conceitos da mente, e, em segundo, o caráter fluido dessas mesmas formas que o pensamento tenta definir. O mundo de fatos e acontecimentos é totalmente nama, nomes abstratos, e rupa, forma fluida. Escapa de igual modo à compreensão do filósofo e à garra daquele que procura o prazer, como água através de um punho fechado. Há algo de ilusório mesmo na idéia de Brâmane como a eterna realidade subjacente ao fluxo, e do atman como fundo divino da consciência humana, porque, na medida em que se trata de conceitos, são tão incapazes de apreender (apreender?) o real como qualquer outro.

        É precisamente este entender a total imprecisão do mundo, que se encontra nas raízes do Budismo. É essa a especial mudança do ponto tonal que, mais que qualquer outra coisa, distingue a doutrina do Buda dos ensinamentos dos Upanichades, e que constitui a razão de ser para o crescimento do Budismo como um movimento distinto, na vida e no pensamento indianos.

            Porque Gautama, o “Acordado” ou Buda (morto cerca de 545 A.C.) viveu num tempo em que os principais Upanichades já existiam, e a filosofia destes deve ser encarada como ponto de partida para seus próprios ensinamentos. Contudo, seria erro muito grave considerar o Buda como “fundador” ou “reformador” de uma religião nascida como qualquer forma de revolta organizada contra o Hinduismo. Isto porque estamos a falar de um tempo em que não havia consciência de “religiões”, em que termos como “Hinduismo” ou “Bramanismo” nada podiam significar. Havia apenas uma tradição, substanciada na doutrina, transmitida oralmente, dos Vedas e Upanichades, uma tradição que não era

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 especificamente religiosa, dado que incluia todo um modo de viver e a tudo dizia respeito, desde os métodos a utilizar na agricultura até o conhecimento da realidade suprema. O Buda agiu em perfeita concordância com esta tradição, ao tornar-se um richi ou “sábio da floresta”, ao abandonar a vida de proprietário e despojar-se da sua casa para seguir um caminho de libertação. Tal como qualquer outro richi, o método do seu caminho de libertação apresentava certos aspectos característicos, e sua doutrina continha críticas ao modo como os homens fracassavam na prática da tradição que professavam.

            Mais ainda,  o Buda era perfeitamente tradicional ao despojar-se da sua casta e ai aceitar, como discípulo, estudantes sem casta e sem lar, pois a tradição indiana, mais ainda que a chinesa, encoraja especificamente o abandono da vida convencional a partir de certa idade, quando já foram cunpridos os deveres familiares e cívicos. A renúncia à casta é o sinal externo e visível da compreensão de que o verdadeiro estado de qualquer indivíduo é “inclassificado”, que sua função ou pessoa é puramente convencional, que sua verdadeira natureza é “nada (não-algo)” e “ninguem (não-alguem)”.

            Tal compreensão foi o ponto crucial da experiência do Buda ao acordar (bodhi), de que certa noite se começou a perceber, estava ele sentado sob a célebre Árvore Bo em Gava, após sete anos de meditação nas florestas. Segundo o ponto de vista do Zen, esta experiência constitui o conteúdo essencial do Budismo...Durante sete anos Gautama tinha lutado, através dos meios tradicionais de ioga e tapas, contemplação e ascese, por penetrar a causa da escravização do homem ao maya, por descobrir o meio de escapar ao círculo vicioso de apego à vida (trichna) que equivale a tentar fazer com que a mão se agarre a si própria. Todos os seus esforços tinham sido em vão. O eterno atman, o Próprio Ser real, não fora encontrado. Por muito que concentrasse sobre sua própria mente afim de encontrar a sua raiz e fundamento, apenas se lhe deparou o seu

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 Próprio esforço de concentração. Na tarde anterior ao seu acordar, desistiu muito simplesmente, abrandou sua dieta ascética, e tomou algum alimento.

          Imediatamente sentiu que uma profunda mudança se originava nele. Sentou-se debaixo da árvore, jurando não se voltar a erguer até ter atingido o supremo acordar, e – de acordo com a tradição – ali ficou durante toda a noite até que o primeiro brilho da estrela da manhã provocou subitamente nele um estado de perfeita clareza e compreensão. Tal estado era anuttara samyak sambodi, “inexcedível, completo acordar”, libertação do maya e do eterno círculo de nascimento e morte (samsara), que constantemente prossegue enquanto um homem tente, seja de que modo for, apegar-se à sua própria vida.

        No entanto, o conteúdo coletivo desta experiência nunca foi, e nunca poderia ter sido traduzido em palavras. Porque as palavras são as molduras do maya, as malhas de sua rede, e a experiência é da água que passa através.

...são palavras atribuídas ao Buda, no Vajracchedika:

...não obtive a mínima coisa do inexcedível, completo acordar, e por essa mesma razão é ele chamado de “inexcedível completo acordar”.

            É assim que, segundo o ponto de vista do Zen, o Buda “nunca disse uma palavra”, apesar dos volumes a ele atribuídos, pois sua mensagem real manteve-se sempre por dizer, e era tal que, quando as palavras tentavam exprimi-la, lhe davam o aspecto de ser coisa alguma. No entanto é tradição essencial do Zen que aquilo que não pode ser expresso em palavras, pode mesmo assim ser transmitido pelo “apontar diretamente”, por meio não oral de comunicação, sem o qual a experiência do Buda nunca poderia ter sido transitida às gerações futuras.

            De acordo com a sua (provavelmente assaz recente) tradição, o Zen mantém que o Buda transmitiu o acordar ao seu principal discípulo, Mahakasyapa, segurando uma flor e mantendo-se silencioso.

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Contudo, o Cânone Pali relata que, imediatamente após o seu acordar, o Buda se dirigiu ao Parque das Corsas em Benares, e expôs a sua doutrina aos que tinham sido anteriormente seus companheiros na vida ascética, sob a forma das Quatro Nobres Verdades que constituem um tão útil sumario do Budismo.

            Estas Quatro Verdades se apresentam sob a forma tradicional Védica do diagnóstico e receita, dados por um médico: a identificação da doença e sua causa, o juízo quanto à possibilidade de cura, e o receitar do remédio.

            A Primeira Verdade refere-se à problemática palavra duhkha, livremente traduzida por “sofrer”, e que designa a grande doença do mundo, para a qual o método do Buda (dharma) é a cura. 

            O nascimento é duhkha, o decair é duhkha, a doença é duhkha, a morte é duhkha, e também o são o pesar e a dor...Estarmos ligados a coisas que aborrecemos, e sermos separados de coisas que gostamos, também isso é duhkha. Não alcançar o que se deseja, é também duhkha. Numa palavra este corpo, esta quíntupla conjugação baseada no agarrar (trichna), eis o que é duhkha.

          Não  podemos, no entanto, comprimir tudo isto na radical asserção de que “a vida é sofrimento”. Significa antes a vida, tal como habitualmente a vivemos, é sofrimento – ou mais precisamente, é infectada pela peculiar frustração que resulta de tentar o impossível. Talvez que “frustração” seja pois o melhor equivalente para duhkha, muito embora esta palavra seja simplesmente um antônimo de sukha,  que significa “agradável” ou “doce”(6). (nota de rodapé nº.6) Ou, se traduzíssemos duhkha por “azedo”, poderíamos dizer que a doutrinas do Buda sustenta que a vida se azeda pela atitude de agarrar que o homem toma perante ela – tal como o leite azeda quando o mantemos demasiado tempo.

            Noutra formulação dos ensinamentos do Buda duhkha é uma das três características de ser, ou tornar-se (bhava), enquanto as ourras duas são anitya, impermanência, e anatman
 
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, ausência de qualquer Próprio Ser. Ambos estes termos são de importância básica. Uma vez mais encontramos que a doutrina anitya não é de modo algum a simples asserção de que o mundo é impermanente, mas antes a de quanto maus tentar-mos agarra-lo, tanto mais ele muda. Em si própria, a realidade não é permanente nem impermanente; ela não pode ser categorizada. Mas quando tentamos apegar-nos a ela, a mudança torna-se aparente em todos os seus aspectos dado que, como nossa própria sombra, quanto mais depressa a perseguimos tanto mais depressa ela foge.
            Do mesmo modo, a doutrina anatman não corresponde à simples asserção de que não existe Próprio Ser (atman) real na base (ou seria no ápice?) de nossa consciência. Significa antes que não existe Próprio Ser, ou realidade básica, que possa ser captada, quer por experiência direta quer por conceitos. Ao que parece, o Buda sentiu que a doutrina do atman nos Upanichades se prestava, como demasiada facilidade a uma fatal má interpretação. Tornou-se um objeto de crença, uma aspiração, um fim a alcançar, algo que  a mente se poderia apegar como um final refúgio de segurança no fluxo da vida. O ponto de vista do Buda era que um Próprio  Ser tão apertadamente agarrado não era já o verdadeiro Próprio, mas apenas mais uma das inúmeras foramas de maya. Assim, anataman pode ser exprimido sob a forma “O verdadeiro Próprio é não-Próprio”, dado que qualquer tentativa para conhecer o Próprio, acreditar no Próprio ou procurar o Próprio, o afasta imediatamente.
            Os Upanichades distinguem entre atman, o verdadeiro e supra-individual Próprio, e o jivatman ou alma individual, e a doutrina anatman do Buda concorda com eles quanto a negação da realidade desta última. Para qualquer escola de budismo a inexistência do ego é fundamental; não existe entidade qualquer entidade duradoura que seja sujeito constante das nossas mutáveis experiências. Porque o ego apenas existe num sentido abstrato, sendo uma abstração da memória,
 
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Algo como o ilusório círculo de fogo, produzido pelo rodar de um archote. Podemos, por exemplo, imaginar o caminho de um pássaro através do céu como uma linha distinta que ele percorreu. Mas esta linha é tão abstrata como uma linha de latitude. Na realidade concreta, o pássaro não deixou qualquer linha e, o passado do qual é abstraído nosso ego desapareceu inteiramente. Deste modo, qualquer tentativa para nos apegarmos ao ego, ou para fazermos dele uma fonte de ação eficiente, está condenada à frustração.
            A Segunda Nobre Verdade relaciona-se com a causa da frustração, considerada como sendo trichna, apegar-se ou agarrar, baseada no avidya que é ignorância ou inconsciência. Ora avidya é oposto formal de acordar. É o estado da mente quando hipnotizada ou fascinada pelo maya, de tal modo que toma o mundo abstrato das coisas e acontecimentos pelo mundo concreto da realidade. A um nível ainda mais profundo, é ausência de auto-conhecimento, ausência da compreensão de que todo agarrar acaba por ser o fútil esforço para se agarrar a si próprio, ou melhor, para fazer com que a vida se apodere de si própria, pois para aquele que possui auto conhecimento, não existe dualidade entre ele próprio e o mundo externo. Avidya é “ignorar” o fato de que o sujeito e objeto são relativos, como os dois lados de uma (mesma) moeda, de modo que quando um prossegue o outro recua. É por isso que a tentativa egocêntrica de dominar o mundo, de por sob o controle do ego a maior porção possível do mundo, pouco caminho terá  a percorrer antes que surja dificuldade do auto-controle do ego.
            Este é realmente um simples problema daquilo a que chamamos hoje cibernética, a ciência do controle. Mecânica e logicamente, é facil verificar que qualquer sistema, ao aproximar-se do perfeito auto-controle, se aproxima também da perfeita auto-frustração. Tal sistema é um círculo vicioso, e apresenta a mesma estrutura lógica de uma declaração que postula algo sobre si própria, como por exemplo “Estou a mentir”, quando se implica que a própria declaração é uma mentira. A declaração circula estultamente sem cessar, posto que é sempre verdadeira na medida que é falsa, e falsa
 
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na medida que é verdadeira”. Exprimindo mais concretamente, não posso lançar uma bola enquanto estiver a agarra-la – de modo a manter o perfeito controle do seu movimento.

                O desejo de um perfeito controle do que nos circunda e de nós próprios baseia-se, pois, numa profunda falta de confiança no controlador. Avidya é a incapacidade de ver a auto-contradição básica desta posição. Daí resulta um fútil agarrar ou controlar da vida que é pura auto-frustração, e o padrão de vida que daí advém é o circulo vicioso que no Hinduismo e no Budismo, ten o nome de Samsara, o Círculo de nascimento-e-morte. (9).

            O princípio ativo do Círculo é conhecido como karma ou “ação condicionada”, isto é, ação originada num motivo e buscando um resultado – o tipo de ação que requer sempre a necessidade para uma ação posterior. O homem envolve-se no karma quando interfere como o mundo de tal modo que é compelido a continuar a interferência,

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 quando a solução de um problema cria ainda mais problemas a resolver, quando o controle de uma coisa origina a necessidade de controlar várias outras. Karma é pois o destino de todo aquele que “tenta ser Deus”. Prepara uma armadilha ao mundo e ele próprio é apanhado nela.

            Muitos Budistas escondem o Círculo de nascimento-e-morte num sentido absolutamente literal, como um processo de reencarnação, segundo a qual o karma, que forma o indivíduo, o continua a fazer vida após vida, até que, através da visão interna e do acordar, é deixado em repouso. Mas no Zen, e noutras escolas do Mahayana, é muitas vezes encarado em sentido mais figurado, segundo o qual o processo de renascimento sucede em todos os momentos, de modo que o indivíduo está a renascer enquanto se identifica a si próprio com um ego contínuo que se reencarna de novo em cada momento do tempo....

            A Terceira Nobre Verdade diz respeito ao acabar da auto-frustração, do agarrar, e de todo o padrão viciosamente circular de karma que gera o Círculo. Este acabar é chamado nirvana, uma palavra de tão dúbia etmologia que uma simples tradução é excessivamente difícil. Tem sido ligada a várias raízes do Sânscrito, que lhe dariam o significado do apagar de uma chama com um sopro, ou simplesmente soprar (ex-piração), ou o cessar de vagas, remoinhos ou círculos (vritti) da mente.

            As duas últimas interpretações parecem ser, no conjunto, as que fazem melhor sentido. Se nirvana é “ex-piração”, então é o ato de alguém que viu a futilidade de tentar suster a respiração ou vida (prana) indefinidamente, dado que suster a respiração é perdê-la. Deste modo, nirvana é o equivalente de mokcha, desprendimento ou libertação.

           

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Encarado sobre outro aspecto, parece ser desespero – o reconhecimento de que a vida acaba sempre por derrotar nossos esforços para a controlar, que toda a luta humana nã passa de uma mão fantasmagórica agarrando-se a nuvens. Visto sob outro aspecto, esse desespero desabrocha em alegria e poder criativo, segundo o princípio de que perder a vida é encontra-la – encontrar liberdade de ação, não obstruída pela auto-frustração e pela ansiedade inerente à tentativa de conservar e controlar o Próprio.

            Se nirvana  se relaciona com o cessar (nir-) de redemoinhos (vritti), o termo é sinônimo do objeto de ioga, definido no Iogasutra como citta vritti nirodha – o cessar dos remoinhos da mente. Estes remoinhos são os pensamentos através dos quais a mente se esforça por agarrar o mundo e a si própria. Ioga é a prática da tentativa de travar estes pensamentos, pensando acerca deles, até que a extrema futilidade do processo seja tão vivamente sentida que este acabe simplesmente por se perder, e a mente descubra seu estado natural sem confusão.

...ambas as etimologias nos oferecem o mesmo significado essencial. Nirvana é o modo de viver que se segue quando o agarrar-se à vida chega ao fim. Na medida em que toda definição é um agarrar, nirvana é necessariamente indefinível. É o estado natural, “não-auto-agarrado”, da mente; e aqui, claro, a mente não tem significado específico, posto que aquilo que não é agarrado não é conhecido, no sentido convencional do conhecimento. Entendido de modo mais popular e liberal, nirvana é o desaparecimento do ser do círculo de encarnações, não para um estado de aniquilamento, mas simplesmente para um estado que escapa a qualquer definição, portanto incomensurável e infinito.

            Alcançar o nirvana é também alcançar o estado de Buda, o acordar. Mas não se trata de um alcançar em qualquer sentido comum do termo, dado que não estão incluídas qualquer aquisição ou motivação. É impossível desejar nirvana, ou pretender alcança-lo, pois qualquer coisa desejável ou concebível como objeto de ação não é, por definição, nirvana. Nirvana só pode acontecer não intencionalmente, espontaneamente, quando a impossibilidade do auto-agarrar foi completamente apreendida.

 

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Um Buda, portanto, não é um homem com uma posição. Não está acima como um anjo; não está abaixo como um demônio. Não aparece em nenhuma das seis divisões do Círculo, e seria errado imagina-lo superior aos anjos, pois a lei do Circulo é que o que sobe deve descer, e vice-versa. Ele transcendeu toda e qualquer dualidade, e assim nada significaria, para ele, encarar-se a si próprio como uma pessoa superior ou um êxito espiritual.            

            A Quarta Nobre Verdade descreve os oitos degraus do Dharma do Buda, isto é, o método ou doutrina pelo qual a auto-frustração é aniquilada. Cada um dos degraus têm um nome, precedido da palavra samyak (Pali, samma), que tem o significado de “perfeito” ou “completo”. Os primeiros dois degraus tem a ver com o pensamento; os quatro seguintes com a ação; e os dois últimos com a contemplação ou o estar ciente. Temos pois:

01 Samyag-drichti, ou completa visão; 
02 Samyak-samkalpa, ou completa compreensão;  
03 Samyag-vak, ou completo (ou seja, verídico) discurso;  
04 Samyak-karmana, ou completa ação;  
05 Samyagajiva, o completa vocação;  
06 Samiag-vyayama, ou completa aplicação;  
07 Samyak-smriti, ou completo recolhimento;
08 Samiak-samadhi, ou completa contemplação.

           Sem discutir em pormenor estas seções, poder-se-á simplesmente dizer que as primeiras duas se referem a uma correta compreensão da doutrina e da situação humana. De certo modo, o primeiro degrau, “completa visão”, contem todas as outras, dado que o método do Budismo é, acima de tudo, a prática de uma clara compreensão de ver o mundo yathabhutam – tal como ele é. Esta compreensão consiste numa viva atenção à experiência direta, ao mundo como imediatamente percebido, de modo a não ser iludido por nomes e rótulos. Samyak-Samadhi, ultimo degrau da escada, é o aperfeiçoamento do primeiro, significando pura experiência, pura compreensão, onde não tem já lugar o dualismo de conhecedor e conhecido.

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           Os degraus que se relacionam com a ação são muitas vezes mal compreendidos porque apresentam uma enganadora semelhança com um “sistema moral”. O Budismo na compartilha o ponto de vista ocidental de que existe uma lei moral, ordenada por Deus ou pela natureza, a que é dever do homem obedecer. Os preceitos de conduta do Buda – abster-se de tirar a vida, de tirar o que não é dado, de explorar as paixões, de mentir e de se intoxicar – são regras de recurso voluntariamente assumidas, cuja intenção é remover os obstáculos à clareza de compreensão. A não observância dos preceitos provoca “mau karma”, não porque karma seja uma lei ou retribuição moral, mas porque todas as ações motivadas e com propósito, sejam elas convencionalmente boas ou más, são, karma tanto quanto pretendem ao agarrar da vida. De um modo geral, as ações convencionalmente “más” são bastante mais aprisionantes que as “boas”. Mas os níveis mais altos da prática Budista estão tão empenhados na libertação do “bom karma” como do “mau”. Portanto, a completa ação é a ação absolutamente livre, não projetada espontânea, exatamente no mesmo sentido do wu-wei Taoista.

          Smriti, recolhimento, e samadhi, contemplação, constituem a seção que trata da vida meditativa, a prática interior, mental, do caminho do Buda. O completo recolhimento é estar constantemente ciente de, ou observando as próprias sensações sentimentos e pensamentos – sem propósito nem comentário. É uma total clareza e presença da mente, ativamente passiva, enquanto os acontecimentos vêm e vão como reflexos num espelho: nada é refletido exceto o que é.

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          Através desta compreensão vê-se que a diferença entre o pensador e o pensado, o conhecedor e o conhecido, o sujeito e o objeto, é puramente abstrata. Não há mente por um lado e as suas experiências pelo outro: há apenas um processo de experimentar em que nada há para ser agarrado, como objeto, e ninguém, como sujeito, para o agarrar. Encarado deste modo, o processo do experimentar deixa de se apegar a si próprio. Um pensamento segue outro pensamento sem interrupção, isto é, sem qualquer necessidade de se dividir a si próprio de si próprio, a fim de se tornar o seu próprio objeto.

            “Onde há um objeto, aí surge o pensamento”. Será então o pensamento uma coisa, e o objeto outra? Não, o que o objeto é, é precisamente o pensamento. Se o objeto fosse uma coisa e o pensamento outra, haveria então um duplo estado de pensamento. Assim, o próprio objeto é apenas pensamento. Poderá, então o pensamento examinar o pensamento? Não, o pensamento não pode examinar o pensamento. Tal como uma lâmina de uma espada não se pode cortar a si própria, tal como a ponta de um dedo não pode tocar em si própria, assim também um pensamento não pode ver a si próprio.

Esta não dualidade da mente, em que não se encontra já dividida contra si própria, é samadhi, e graças ao desaparecimento da infrutífera tentativa da mente para se agarrar a si própria, samadhi é um estado de profunda paz. Não se trata da quietude de uma total inatividade dado que, logo que a mente volta ao seu estado natural, samadhi mantém-se em todas as alturas, “andando, parado, sentado e deitado”. Porém, e desde os primeiros tempos, o Budismo

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deu especial importância à pratica do recolhimento e contemplação na posição de sentado. A maior parte das imagens do Buda mostra-o sentado, em meditação, na particular atitude conhecida como padmasana, a postura do lótus, com as pernas cruzadas e os pés repousando, com as solas para cima, sobre as coxas.

            Meditar sentado não é, como muitas vezes se supõe, um “exercício” espiritual, uma pratica seguida com vista a um objetivo ulterior. Segundo o modo de ver Budista, é apenas a maneira correta de se sentar, e é encarado como perfeitamente natural ficar sentado  enquanto não houver mais nada que fazer, e desde que o indivíduo não esteja consumido pela agitação nervosa. Para o irrequieto temperamento do ocidental, meditar sentado pode parecer uma desagradável disciplina, pois não somos capazes de nos sentarmos “só para nos sentarmos”, sem suprimos de consciência, sem sentirmos que devíamos estar a fazer algo mais importante para justificar nossa existência. A fim de aplacar esta irrequieta consciência, meditar sentado deve pois ser encarado como um exercício, uma disciplina para um objetivo ulterior. Contudo, a partir desse preciso momento deixa de ser meditação (dhyana) no sentido Budista, porque onde há propósito, onde há um procurar e tentar alcançar resultados, não há dhyana.

            A palavra dhyana (Pali, jhana) é a forma original Sancrista do chinês ch’an e do japonês zen, seu significado é pois de capital importância para a compreensão do Budismo Zen. “Meditação” no sentido vulgar de “pensar bem as coisas” ou “cismar” é uma tradução extremamente enganadora. Porém alternativas como “transe” ou concentração são ainda piores, dado que sugerem estados de fascinação hipnótica. A melhor solução parece residir em deixar dhyana por traduzir, e inclui-la na libguagem corrente tal como já se incluíram Nirvana e Tao.

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 Como usado no Budismo, o termo dhyana compreende a um tempo recolhimento (smriti) e samadhi, e pode ser melhor descrito como estado de atenção unificada ou unidirecional. Por um lado é unidirecional no sentido de ser um estado de consciência sem diferenciação ente o conhecedor, o conhecer e o conhecido...

A dificuldade em apreciar o que dhyana significa reside em que a estrutura da nossa língua não nos permite usar um verbo transitivo sem um sujeito e um complemento direto. Quando há “saber”, a convenção gramatical exige, a existência de alguém que saiba e de algo que seja sabido... 

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 desconforto intelectual ao tentarmos conceber um saber sem “alguém” distinto que saiba e “algo” distinto que seja sabido, é idêntico ao desconforto de chegar de pijama a um jantar de cerimônia. O erro é convencional, não existencial.

            Uma vez mais, portanto, vemos como a convenção, o maya de medição e descrição povoa o mundo com esses fantasmas a que chamamos entidades e coisas. Tão hipnótico, tão persuasor é o poder da convenção, que começamos a encarar esses fantasmas como realidades, e a fazer deles nossos amores, os nossos ideais, as nossas prezadas posses. Mas o problema, carregado de ansiedade, do que me sucederá quando eu morrer é, ao fim e ao cabo, como perguntar o que sucede ao meu punho quando eu abro a mão, ou para onde vai meu colo quando eu levanto...

 Apenas sofrer existe, ninguém que sofra;
            O ato existe, não quem o tenha feito;
            Nirvana é, sem ninguém que o procure;
            Há o caminho, mas não quem o percorra.

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