Watts A.W.
O Budismo Zem
Primeira Parte – Fundamentos e História

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4 – Origem e Desenvolvimento do Zen

As qualidades que distinguem o Zen ou Ch’an dos outros tipos de Budismo são assaz imprecisas quando se trata de as expor em palavras. Contudo, o Zen tem um “sabor” definido e inconfundível. Embora o nome Zen seja dhyana, ou meditação, outras escolas do Budismo dão tanta importância à meditação como o Zen, se não mesmo mais – e há inclusivamente alturas em que se diria que a prática da meditação formal não é, de modo algum, necessária ao Zen “nada ter para dizer”, a insistência em que a verdade não pode ser exprimida através de palavras, pois isto é já o Madhyamika bem como o ensinamento de Lao-tzu.

Aqueles que sabem não falam
           Aqueles que falam não sabem

Talvez o especial sabor do Zen seja melhor descrito como um certo directismo. Noutras escolas de Budismo, o acordar ou bodhi parece remoto e quase sobre humano, algo a ser alcançado apenas depois de muitas vidas de esforço paciente. Mas no Zen há quase sempre a sensação de que o acordar é algo perfeitamente natural,

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algo de espantosamente óbvio, que poderá suceder a qualquer momento. E se implica alguma dificuldade, é precisamente o fato de ser demasiadamente simples. O Zen é também direto no seu modo de ensinar, pois aponta direta e abertamente a verdade, e não perde tempo com simbolismos.

            Apontar diretamente (chih-chih) é clara demonstração do Zen por atos ou palavras não simbólicos, que geralmente se apresentam ao não iniciado como relacionados com os mais comuns assuntos da vida secular, ou como sendo completamente loucos. Em resposta a uma pergunta sobre o Budismo, o mestre faz uma observação superficial sobre o estado do tempo, ou executa qualquer ato simples que nada parece ter em comum com assuntos filosóficos ou espirituais. Contudo, é difícil encontrar muitos exemplos deste método antes dos meados da dinastia T’ang, altura em que o Zen se encontrava já firmemente estabelecido. Mas por certo que está de acordo com a ênfase que os primeiros mestres punham no acordar imediato, durante as ocupações do dia-a-dia.

            Ninguém foi capaz de conseguir encontrar qualquer traço específico da Escola Dhyana no Budismo Indiano, embora, dada a falta de documentação histórica, tal fato não prove que essa Escola não exista. Se a nota característica do Zen é o acordar imediato ou instantâneo (tun wu) sem qualquer passagem por fases preparatórias, há certas provas deste princípio na India. O Lankavatara Sutra atesta a existência tanto dos graduais como dos súbitos (yuga-pat) modos de acordar, o primeiro pela purificação dos maculados escoamentos ou projeções (ashrava) da mente, e o segundo por paravritti – uma “reviravolta” instantânea no mais profundo da consciência, pela qual são expulsos os modos de ver dualistas. É comparado a um espelho, refletindo imediatamente quaisquer formas ou imagens que apareçam perante ele. 01 – Lankavatara Sutra. De acordo com a tradição, era este o sutra favorito de Bodhidharma, o semi-lendário fundador do Zen na China (Nota de Rodapé)

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 ... atingir o acordar não é atingir coisa alguma. Por outras palavras, se nirvana existe realmente, aqui e agora, pelo que procura-lo é perde-lo, uma compreensão através de fases progressivas dificilmente poderá ser apropriada. Dever-se-ia antes encontra-lo no momento presente diretamente...

            O Budismo Tibetano compreende também uma tradição do Breve Caminho, considerado como uma rápida e íngreme ascensão ao nirvana para aqueles que têm a coragem necessária...

                 Nem pensamento, nem reflexão, nem análise,
                Nem cultura
(ato de cultivar), nem intenção;
                Deixa que se instale por si próprio.

 02- O original é:

               Mi-mno, mi-bsam, mi-dpyad-ching,
              Mi-bsgom, mi-sems, rang-babs-bzhag.
(Nota de Rodapé)

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             A libertação imediata, sem qualquer artifício ou intensão especial, está também implícita na ideia Tantrica de sahaja, o estado “fácil” ou “natural” do sábio libertado.

            Não é este o lugar para discutirmos o significado real do acordar imediato e da naturalidade, mas citamos estes exemplos para mostrarmos que a tradição de um caminho direto existia fora da china, sugerindo a existência de uma fonte original do Budismo Indiano.... um principio desta natureza, tão facilmente suscetível de más interpretações, deve ter sido mantido como “doutrina secreta” que só mais tarde viria a ser abertamente discutida. Na verdade, a tradição Zen mantém que o acordar imediato não é comunicado através dos sutras, mas que foi transmitido diretamente, de mestre a discípulo. Esta afirmação não implica necessariamente nada de tão “esotérico” como uma experiência transmitida por telepatia, mas algo de muito menos sensacional. Assim, quando os panditas hindus insistem em que a sabedoria não será adquirida nas escrituras, mas apenas de um professor ou guru, significa isto que os próprios textos – ais como o Iogasutra – apenas contém os princípios da doutrina, e que a sua completa explicação requer alguém que tenha aprendido a tradição oral.

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            Seng-chao convertera-se ao Budismo em virtude de uma leitura do Vimalakirti Sutra- um texto que exerceu considerável influência sobre o Zen. Embora Seng-chao se tornasse monge, este sutra é a historia de um leigo, Vimalakirti, que superou todos os discípulos do Buda pela profundidade de sua compreensão. Ultrapassara todos os outros discípulos e Bodhisattvas ao responder a uma pergunta referente à natureza da realidade não-dual com um trovejante silêncio – um exemplo frequentemente seguido pelos mestres do Zen. Vimalakirti “trovejantemente silencioso”      é, também, um tema favorito dos artistas Zen. Mas a principal importância deste sutra para a China e para o Zen reside neste ponto: o acordar perfeito é compatível com os afazeres da vida cotidiana e, na verdade, a mais alta aquisição reside em acordar “passar ao acordar sem a exterminação das coisas profanas (klesa)”.

            Aqui residia um apelo tanto para a mentalidade Confucionista como para a Taoista. A importância dada pelo Confucionismo à vida em família não poderia simpatizar como um tipo de Budismo rigorosamente monástico. Embora os mestres do Budismo Chinês fossem, regra geral, monges, tinham grande números de discípulos leigos, e o Zen, em particular, deu sempre grande importância à expressão do Budismo em termos formalmente seculares – todos os tipos de arte, trabalhos manual, e apreciação do universo natural.

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Tanto para os confucionistas como para os Taoistas seria especialmente agradável a idéia de um acordar que não implicasse a exterminação das paixões humanas, que é outra tradução possível de klesa. Já atrás referimos a particular confiança na natureza humana que ambas as filosofias professam. Contudo, não exterminar as paixões é muito diferente de as deixar desenvolver à vontade. Significa mais abandoná-las que lutar com elas, ou seja, nem reprimir a paixão nem entregar-se a ela. Porque o Taoista nunca é violento, dado que alcança seus fins pela não interferência (wu-wei), que é uma espécie de judô psicológico.

... nos fins do século V, Liu Ch’iu pode dizer:

            A partir das montanhas K’un-lun para leste é usado o termo (Taoista) “Grande Unicidade”. A partir de Cachemira para oeste é usado o termo (Bdista) smabodhi. Quer olhemos saudosamente na direção do “não-ser” (wu), quer cultivemos o “vazio” (sunyata), o princípio implicado é o mesmo.

            Duas das doutrinas de Seng-chao parecem haver tido alguma importância para o posterior desenvolvimento do Zen – a sua visão do tempo e mudança, e sua ideia de que “prajna não é conhecimento”. O capitulo sobre “A imutabilidade das Coisas” no seu Livro de Chao é tão original e tão espantosamente semelhante à parte que trata do tempo no primeiro volume do Shobogenzo de Doegen, que o célebre filósofo Zen Japonês dificilmente terá deixado de o conhecer.

            As coisas passadas estão no passado e não vão dele para o presente, e as coisas presentes estão no presente, e não chegam a eles vindas do passado... O sol e a lua percorrendo as suas órbitas, não andam de roda (a toa)...

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            Do mesmo modo, Dogen fez notar que as achas da fogueira não se tornam cinzas e a vida não se torna morte, precisamente como o inverno não se torna primavera. Cada momento do tempo é “contido-em-si-próprio e inativo”. 4 – A mesma ideia foi usada ates de Dogen, pelo mestre Zen, Ma-tsu: “Assim é com os primeiros pensamentos, os últimos pensamentos, e os que ficam entre eles: os pensamentos seguem-se uns aos outros sem estarem ligados entre si. Cada um é absolutamente tranquilo”. (nota de rodapé)

            Seng-chao discutiu também o aparente paradoxo de que prajna é um tipo de ignorância. Não tendo a realidade suprema quaisquer qualidades, e não sendo uma coisa, não se pode tornar um objeto de conhecimento. Portanto prajna, visão interior direta, conhece a verdade de modo de a não conhecer.

            A sabedoria não conhece, porém ilumina a mais abissal profundidade. O espirito não calcula, porém responde às necessidades de um momento dado. Porque não calcula, o espirito brilha solitariamente glorioso, no que fica para além do mundo. Porque não conhece a Sabedoria ilumina o Mistério (hsüan) para além dos assuntos mundanos. Porém, embora a Sabedoria seja exterior a tais assuntos, nunca os abandona. Embora o espirito esteja para lá do mundo metem-se para sempre dentro dele.(Liebenthal, op.cit.)

             É esta uma das principais ligações entre o Taoismo e o Zen, pois a terminologia do Livro de Chao são totalmente Taoistas, embora o assunto principal seja Budista. Os dizeres dos primeiros mestres do Zen, tais como Hui-neng, Shen-Hui e Hang-po, estão cheios destas mesmas ideias – que saber verdadeiramente não é saber, que a mente acordada reage imediatamente, sem cálculo, e que não há incompatibilidade entre o estado de Buda e a cotidiana vida do mundo.

            Ainda mais próximo do ponto de vista do Zen, estava o condiscípulo de Seng-chao, Tao-sheng (360-434), o primeiro e inequívoco representante da doutrina do acordar instantâneo.

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 Se não consegue alcançar nirvana pelo agarrar, não pode ser posto em questão o aproximar-se dele (nirvana) por fases, pelo lento processo de acumulação do conhecimento. Deve ser alcançado num único clarão de visão interna, a qual é tun wu, ou, em japonês, satori, o termo familiar Zen para o súbito acordar... o acordar instantâneo é mais apropriado à mentalidade chinesa que a indiana, e vem dar mas peso a descrição que Suzuki faz do Zen como sendo “revolução” chinesa contra o Budismo Indiano. A doutrina de Tao-sheng, embora insólita e espantosa, deve ter encontrado considerável aceitação...

            A importância destes primeiros percussores do Zen reside em que fornecem uma pista quanto aos inícios históricos do movimento, no caso de não podermos aceitar a história tradicional de sua chegada a China em 520, com o monge indiano Bodhidharma. Eruditos modernos, tais como Fung Yu-lan e Pelliot, lançaram sérias dúvidas sobre a verdade desta tradição. Sugerem que a história de Bodhidharma foi uma piedosa invenção de tempos mais recentes, quando a escola Zen necessitou de autoridade histórica para sua reinvindicação de constituir uma transmissão direta de experiência, a partir do próprio Buda, e exteriormente aos sutras. Bodhidharma é apresentado como o vigésimo oitavo de uma lista, um tanto fantasiosa, de Patriarcas Indianos, decorrendo numa linha direta de “sucessão apostólica”, de Gautama.

            Nesta altura do nosso inquérito é difícil afirmar se as opiniões destes eruditos devem ser encaradas seriamente, ou se constituem apenas outro exemplo da moda acadêmica de

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 lançar dúvidas sobre a historicidade de fundadores religiosos. A história tradicional que a escola Zen refere quanto a sua própria origem é que Bodhidharma chegou a Cantão, vindo da Índia, por volta do ano de 520, e se dirigiu à corte do Imperador Wu de Liang, um entusiástico protetor do Budismo. Contudo, a doutrina de Bodhidarma e a sua abrupta atitude não agradaram ao Imperador, pelo que o monge se retirou, durante alguns anos, para o mosteiro no estado de Wei, e ai passou o tempo “contemplando a parede” até que, por fim, encontrou um discípulo com as condições necessárias, Hui-k’o, que veio a ser, subsequentemente, o segundo Patriarca do Zen na China...

Uma vez mais, parece-nos que poderemos muito bem aceitar a história de Bodhidharma até que, contra sua veracidade, surja alguma prova irrespondível, reconhecendo também a as ideias de Seng-chao, Tao-sheng e outros, podiam ser tributários (afluentes?) da corrente do Zen.

            Uma das razões que tornam suspeita a historia de Bodhidharma é ser o Zen tão chinês no seu estilo que uma origem indiana parece improvável. Contudo, o muito Taoistico Seng-chao era discípulo Kamarajiva, assim como Tao-Sheng, e os escritos atribuídos a Bodhidharma e aos seus sucessores até Hui-beng (638-713), mostram claramente a transição entre o modo indiano e o chinês de encarar dhyana.

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            A ausência de qualquer menção a uma escola Dhyana na leitura Budista indiana, ou a Bodhidharma em ligação com ela , deve-se ao fato de nunca ter existido, mesmo na China, qualquer Escola Dhyana ou Zen até cerca de duzentos anos após a época de Bodhidharma. Por outro lado, deve ter havido uma prática quase universal de dhyana – que é, ou Ts’o-ch’an (japonês, za-zen) ou meditar sentado – entre os monges Budistas, os instrutores especiais que dirigiam esta prática eram chamados mestres de dhyana, fosse qual fosse a sua escola ou seita. Do mesmo modo, existiam mestres de vinaya, ou instrutores de disciplina monástica, e mestres de dharma, ou instrutores de doutrina. O Zen só se tornou uma escola distinta ao promulgar um modo de encarar dhyana que diferia completamente da prática geralmente aceita. (Tan Ching de Hui-neng, por exemplo, refere vários exemplos de conversas do Sexto Patriarca com mestres de dhyana obviamente não pertencentes á sua “escola do súbito acordar”. E foi só no tempo de Po-chang (720-814) que a Escola Zen teve mosteiros próprios.)(nota de rodapé)

         A tradição Zen representa Bodhidarma como um sujeito de aspecto feroz, com uma barba espessa e olhos muito abertos e penetrantes – nos quais, contudo, há a muito leve sugestão de uma piscadela. Diz a lenda que Bodhiharma adormeceu uma vez, quando em meditação, e ficou tão furioso que cortou as pálpebras as quais, ao caírem no chão deram origem á primeira planta do chá. Desde então, o chá tem proporcionado  aos monges Zen uma proteção contra o sono, e de tal modo esclarece e revigora a mente que já foi dito, “o gosto do Zen (ch’an) e o gosto do chá (ch’a) são o mesmo”.

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Outra lenda afirma que Bodhidharma se sentou em meditação durante tanto tempo que lhe caíram as pernas. Daí o delicisoso simbolismo das bonecas japonesas Daruma, que presentam Bodhidharma como um gorducho boneco... com um peso interior colocado de tal modo que, quando deitado abaixo, volta sempre a pôr-se de pé (o nosso sempre-em-pé). (joão teimoso). Um popular poema japonês diz acerca da boneca Daruma:

            Jinsei nana korobi
                Yao ki.

                Assim é a vida –
                Sete vezes cai,
                Oito se levanta!

            A citada entrevista de Bodhidharma com o Imperador Wu de Liang é típica do seu modo abrupto e direto. Foi o caso que o Imperador descreveu tudo que havia feito para promover a prática do Budismo, e perguntou que mérito tinha adquirido através desse procedimento – adotando assim  conceito popular segundo o qual o Budismo é uma gradual acumulação de mérito através de boas ações, conduzindo a cada vez melhores circunstâncias em vidas futuras e, finalmente, ao nirvana. Mas Bodhidharma replicou, “Absolutamente nenhum mérito!”. Esta resposta perturbou de tal modo as ideias do Imperador sobre o Budismo, que perguntou, “Então, qual é o primeiro princípio da sagrada doutrina?”   Bodhidharma respondeu, “É apenas vazio; nada há de sagrado.” “Nesse caso, quem és tu”, disse o Imperador, “que assim te ergues perante nós?” “Não sei”.

            Após esta entrevista tão pouco satisfatória para o ponto de vista do Imperador, Bodhidharma retirou-se para um mosteiro em Wei, onde se diz que passou nove anos numa gruta, “contemplando a parede” (pi-kuam). Suzuki sustenta que essas palavras não devem ser tomadas em sentido literal, e que a expressão se refere ao estado interior de Bodhidharma,

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expulsando de sua mente todos os pensamentos possessivos (agarradores). Assim se manteve Bodhidharma, até que se aproximou dele o monge Shen-kuang, depois chamado Hui-k’o (486-593, talvez!), que viria a ser o sucessor de Bodhidharma como segundo Patriarca.

            Muitas e muitas vezes pediu Hui-k’o a instrução a Bodhidharma, mas este sempre recusou. No entanto, Hui-k’o continuou sentado em meditação fora da caverna, aguardando pacientemente na neve, na esperança de que Bodhidharma viesse ainda a compadecer-se. No seu desespero, acabou por cortar o braço esquerdo e apresentou-o a Bodhidharma como testemunho de sua dolorosa sinceridade. Perante isso, Bodhidharma per4guntou finalmente a Hui-k’o o que ele queria.

            “Não tenho paz na minha mente (hsin)”, disse Hui-k’o. “Por favor, pacifica a minha mente.”
            “Traz a tua mente aqui em minha presença”, replicou Bodhidharma, “e pacificá-la-ei!”
            “Mas quando busco a minha própria mente”, disse Hui-k’o, “não consigo encontra-la.”
            “Pronto!” exclamou Bodhidharma, “pacifiquei a tua mente!”.

            Nesse momento, Hui-k’o teve o seu acordar, o seu tun-wu ou  satori, pelo que este diálogo é encarado como primeiro exemplo do que veio a ser o método característico Zen de instrução – o wen-ta (japonês mondo) ou “pergunta-e-resposta”, algmas vezes livremente chamado “história zen”. A maior parte da literatura Zen consiste nestas historietas, muitas delas bastantes mais enigmáticas do que esta, e o seu fito é acelerar qualquer tipo de súbita compreensão na mete do interrogador, ou comprovar a profundidade da sua visão interior. Por este motivo, tais historietas não podem ser “explicadas” sem lhes estragarmos o efeito...

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            Devemos... compreender que o caráter principal destas historietas só raramente é simbólico... os comentadores... estão... enganados ao supor que a intenção principal reside na comunicação de qualquer princípio Budista por meio de um símbolo... Porque tudo o que o mestre Zen diz ou faz é uma expressão direta e espontânea de “tal-qual (ismo)”, da  natureza de Buda, e o que ele transmite não é símbolo mas a própria coisa. A comunicação de Zen é sempre “apontar diretamente”, de acordo com o tradicional sumário, em quatro frases, do Zen:

             Fora do ensinamento; à parte da tradição.
            Não fundamentado em palavras e letras.
            Diretamente apontando para a mente do homem.
            Aprofundando a natureza própria e alcançando o estado
                                                                                            de Buda

         ...o significado de não poder a verdade do Zen ser expressa por qualquer forma de doutrina, ou de que o professor só pode mostrar como alcança-la...(nota de rodapé)

             Diz-se ter sido Seng-ts’an (morto em 606) o sucessor de Hui-k’o... A ele é atribuído

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 um célebre poema chamado Hsin-hsin Ming, o “Tratado sobre a Fé na Mente”... o seu sabor Taoista é evidente nas primeiras linhas:

            O perfeito Tao é sem dificuldade,
            Salvo no evitar colher e escolher.

E ainda:

            Segue a tua natureza e harmoniza-te com o Tao;
            Avança calmamente e abandona as inquietações.
            Se os teus pensamentos estão amarrados estragas o que
                                                                                          [é genuíno...
            Não sejas antagônico ao mundo dos sentidos,
            Pois quando lhe não és antagônico
            Verificas ser ele o mesmo que o completo Acordar.
            A pessoa sábia não se esforça (Wu-wei);
            O homem ignorante ata-se a si próprio...
            Se trabalhas a tua mente com a tua mente
            Como podes evitar uma confusão imensa?

           Não só poema está cheio de termos Taoistas como wu-wei e tzu-jan (espontaneidade), mas toda a sua atitude corresponde a deixar libre a mente do indivíduo, confiando em que siga a sua própria natureza – em contraste com a atitude, mais tipicamente indiana, de a manter sob rígido controle, rejeitando a experiência dos sentidos.

            Julga-se que o Quarto Patriarca, sucedendo a Seng-ts’an, tenha sido Tao-hsin (579-651). Quando chegou junto de Seng-ts’an, perguntou-lhe:  
            “Qual é o método para a libertação?”
            “Quem te amarra?” replicou Seng-ts’na.  
            “Ninguém.”

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            “Porque,” perguntou Seng-ts’na, “procurais pois a libertação?”

            E foi assim o satori de Tao-hsin. e o  sábio Fa-yung, que vivia num solitário templo do Monte Niu-t’ou, e era tão puro que os pássaros lhe costumavam trazer oferendas de flores. Enquanto os dois homens falavam um animal selvagem rugiu ali perto, e Tao-hsin deu um salto. Fa-yung comentou “Vejo que ainda está contigo!” – referindo-se, claro, `”paixão” (klesa) instintiva do susto. Pouco depois, aproveitando o momento que não era observado, Tao-hsin escreveu o caráter chinês que significa “Buda” na rocha em que Fa-yung se costumava sentar. Quando Fa-yung voltou ao seu lugar, viu o nome sagrado e hesitou em sentar-se. “Vejo”, disse Tao-hsin, “que ainda está contigo!”. A esta observação Fa-yung alcançou o perfeito acordar... E os pássaros nunca mais lhe trouxeram flores.

            O quinto patriarca – e aqui entramos já num mais seguro capítulo da História – foi Hung-jan (601-675). No seu primeiro encontro com Hung-jam, o Patriarca perguntou:

            “Qual é o teu nome (hsing)?”
            “Tenho realmente uma natureza (hsing)” replicou Hung-jan, fazendo um trocadilho com os dois sentidos da palavra, “mas não é uma natureza comum.”
            “Que nome é esse?” inquiriu o Patriarca sem entender o trocadilho.
            “É a natureza de Buda.”
            “Então não tens nome?!”
            “Isso é porque se trata de uma natureza vazia.”

            Hung-jan parece ter sido o primeiro dos Patriarcas como muitos seguidores, pois se diz que dirigia um grupo de cerca de 500 monges, num mosteiro da Montanha da Ameixa Amarela (Wang-mei Shan), na extremidade oriental do moderno Hupeh. É, contudo, deixado na sombra pelo seu sucewssor imediato, Hui-neng (673-713), cuja vida e ensinam

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 mentos marcam o começo definitivo de um Zen verdadeiramente chinês – do Zen tal como prosperou durante o que foi mais tarde chamado “a época da atividade Zen”, ou seja, os últimos duzentos anos da disnastia T’ang, desde cerca de 700 até 906.

            Não devemos passar em claro os contemporâneos de Hui-neng, pois viveu ele uma época das mais criadoras no Budismo Chinês.

            Diz-se que Hui-neng teve o seu primeiro acordar quando, ainda quase um rapaz lhe aconteceu ouvir por acaso alguém lendo o Vajracchedika. Partiu quase imediatamente para o mosteiro de Hung-jan, em Wang-mei, para ser confirmado na sua compreensão e receber instrução mais profunda. Deveremos notar (para referência futura) que o seu primeiro satori ocorreu espontaneamente, sem o auxílio de um mestre, e que a sua biografia o apresenta como um camponês iletrado das redondezas de Cantão. Ao que parece, Hung-jan reconheceu imediatamente a profundidade da sua visão interior, mas temendo que a sua origem humilde o pudesse tornar inaceitável numa comunidade de monges eruditos, pô-lo a trabalhar na cozinha.

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            Algum tempo mais tarde, o Patriarca anunciou que procurava um sucessor a quem transmitiria o seu posto, juntamente com a túnica e a tigela das esmolas (que se dizia provirem do próprio Buda) que eram as suas insígnias. Tal honra seria conferida à pessoa que apresentasse o melhor poema, exprimindo a sua compreensão do Budismo. O principal monge da comunidade era então um certo Shen-hsiu, e todos os outros supuseram naturalmente que o posto iria para ele, pelo que não fizeram qualquer tentativa para competir.

            Contudo, Shen-hsiu tinha dúvidas quanto à sua própria compreensão, e decidiu apresentar-se anonimamente o seu poema, reivindicando autoria do mesmo se o Patriarca viesse a aprova-lo. Assim, durante a noite, escreveu na parede do corredor , junto aos aposentos do Patriarca, os seguintes versos:

                O Corpo é a Arvore de Bodhi;
                A mente como um brilhante espelho vertical.
                Tem o cuidado de o limpar constantemente,
                E não deixes que a ele se prenda qualquer pó.

             N amanhã seguinte, o Patriarca leu o poema e ordenou que fosse queimado incenso diante dele, dizendo que todos aqueles que o pusessem em prática seriam capazes de compreender as suas verdadeiras naturezas. Mas quando Shen-hsiu o procurou particularmente, declarando ser o autor, o Patriarca afirmou que sua compreensão estava ainda longe de ser perfeita.

            No dia seguinte, apareceu outro poema ao lado do primeiro:

                 Nunca existiu uma Arvore de Bodhi,
                Nem brilhante espelho vertical.
                Fundamentalmente, nem uma coisa existe,
                E assim, onde o pó poderá pendurar-se
?

             O Patriarca compreendeu que só Hui-neng poderia ter escrito isto, mas para evitar invejas apagou o poema com seu sapato e, à noite, mandou que Hui-neng viesse secreta

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 mente ao seu quarto. Ali lhe conferiu o Patriarcado, a túnica e, sobre esta, a tigela, e disse-lhe que se retirasse para as montanhas até que os sentimentos feridos dos outros monges se acalmassem, e chegasse o tempo de ele começar a ensinar publicamente.

            Uma comparação entre os dois poemas faz imediatamente ressaltar o especial sabor do Zen de Hui-neng. O poema de Shen-hsiu reflete o que era, ao que parece, o modo geral e popular de encarar a prática de dhyana, no Budismo Chinês. Era obviamente compreendido como a disciplina de meditar sentado (ts’o-ch’na), na qual a mente era “purificada” por uma intensa concentração que poria fim a todos os pensamentos e ligaçãoes. Tomados num sentido quase literal, muitos textos Taoistas e Budistas dariam peso a esta opinião – a saber, que o mais alto estado de consciência é uma consciência vazia de tudo que contém, todas as ideias, sentimentos, e mesmo sensações. Hoje na Índia é essa uma noção muito prevalecente de samadhi. Mas a nossa própria experiência com o Cristianismo torna-nos assaz familiar, mesmo na altas esferas, a este tipo de literalidade.

            A posição de Hui-neng era que um homem com uma consciência vazia não valia mais que “um bloco de madeira ou um estilhaço de pedra”. Insistiu em que toda a ideia de purificar a mente era irrelevante e provocadora de confusão, porque “a nossa própria natureza é fundamentalmente clara e pura”. Por outras palavras, não há qualquer analogia entre consciência ou mente, e um espelho que pode ser limpo. A verdadeira mente é “não –mente” (Wu-hsin), significando isto que não deve ser encarada como um objeto de pensamento ou ação, como se trata-se de uma coisa susceptível de ser agarrada e controlada. A tentativa de agir sobre a nossa própria mente é um círculo vicioso. Tentar purifica-la é estar contaminado pela pureza. Como é obvio, trata-se aqui da filosofia taoísta da naturalidade, segundo a qual uma

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 Pessoa não é genuinamente livre, desprendida ou pura, quando seu estado resulta de uma disciplina artificial.  Limita-se a imitar a pureza, a “macaquear” a clara compreensão. Daí a desagradável e autoconvencida honradez daqueles que são deliberada e metodicamente religiosos.

            O ensinamento de Hui-neng é que, em vez de tentarmos purificar ou desocupar a mente, devemos pura e simplesmente solta-la – porque a mente não é para ser agarrada. Soltar a mente equivale ainda a soltar a série de pensamentos e impressões (nien) que vem e vão “na” mente, nem os reprimindo ou sustendo, nem interferindo com eles.  

     Os pensamentos vem e vão por si próprios pois, pelo uso da sabedoria, não há obstrução. Eis o samadhi de prajna, e a natural libertação. Tal é a pratica de “não pensamento” (wu-nien). Mas se pensares em absolutamente coisa alguma, e ordenares desde logo que os pensamentos cessem, isso equivale a ficares atado de pés e mãos por um método, e é chamado de visão obtusa.

          Sobre o modo vulgar de encarar a prática da meditação disse:

      Concentrarmo-nos na mente e contempla-la até que esteja imóvel, é uma doença e não dhyana. Restringir o corpo, ficando sentado durante muito tempo – em que pode isso ajudar a alcançar o Dharma?

             E ainda:

           Se começares a concentrar a mente na imobilidade, conseguirás apenas uma imobilidade irreal. ... Que significa a palavra “meditação” (ts’o-ch’an)? Nesta escola significa ausência de barreiras, de obstáculos; está para além de todas as situações objetivas, boas ou más. A palavra “sentado” (ts’o) significa não remexer pensamentos na mente.

            Ao contrariar o falso dhyana da mera desocupação-da-mente Hui-neng compara o Grande Vácuo ao espaço, e chama-lhe grande, não apenas por ser vazio, mas porque contem o sol, a lua e as estrelas. O verdadeiro dhyana consiste em compreender que a nossa própria natureza é como

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 o espaço, e que os pensamentos e sensações vem e vão nesta “mente original” com pássaros através do céu, sem deixar rastro. Na sua escola, o acordar é “súbito” porque é mais para pessoas de inteligência viva que de inteligência lenta. Estas ultimas têm, necessariamente, de compreender por fases graduais, ou mais exatamente, após um longo tempo, posto que a doutrina do Sexto Patriarca, não admite fases de crescimento. Acordar parcialmente corresponde a um completo acordar porque, não tendo partes ou divisões a natureza de Buda não é alcançada pouco a pouco.

            As suas instruções finais aos discípulos contem uma indicação interessante quanto ao ulterior desenvolvimento do método mondo, ou “pergunta-resposta”, de ensinar:

     Se alguém te fizer perguntas acerca do ser, responde com o não-ser. Se as perguntas são acerca de não-ser, responde com ser. Se te interroga sobre o homem comum, responde nos limites do sábio. Se te interroga sobre o sábio, responde nos limites do homem comum. Através deste método de opostos mutuamente relacionados, nasce uma compreensão do Caminho do Meio. A cada pergunta que te façam, responde nos limites do que lhe é oposto.

            Hui-neng morreu em 713, e com a sua morte acabou a instituição do Patriarcado, pois a árvore genealógica do Zen ramificou-se.

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 ... Nos dois séculos que se seguiram a morte de Hui-neng a proliferação de linhas descendentes e escolas de Zen é assaz complexa, e bastar-nos-á considerar alguns dos mais influentes indivíduos.

            Os escritos e crônicas dos sucessores de Hio-neng continuam a dar importância à naturalidade. Segundo o princípio de que “a verdadeira mente é não-mente”, e de que “a nossa verdadeira natureza não é natureza (especial)”, acrescentam que também a verdadeira prática do Zen não é prática, o que corresponde ao aparente paradoxo de ser um Buda sem pretender ser um Buda.

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 De acordo com Shen-hui:
 
      
Quem tiver este conhecimento, tem contemplação (samadhi) sem contemplar, sabedoria (prajana) sem sabedoria, pratica sem praticar.

         Todo cultivar da concentração é essencialmente errado, desde início. Pois como poderá alguém, pelo cultivar da concentração, obter a concentração?

         Se falamos em trabalhar com a mente, este trabalho consiste em atividade ou inatividade da mente? Se é inatividade, por certo não seremos diferentes de qualquer vulgar idiota. Mas se me dizes que é atividade, então pertence ao domínio do agarrar, e eis-nos manietados pelas paixões (klesa). Que caminho deveríamos pois percorrer para alcançar a libertação? Os sravakas cultivam o vazio, insistem no vazio, e são por ele manietados. Eles cultivam a concentração, insistem na concentração, e são por ela manietados. Eles cultivam a tranquilidade, insistem na tranquilidade, e são por ela manietados. ... Se trabalhar com a mente é disciplinar a mente, como podemos chamar-lhe libertação?

             Hsüan-chüeh começa na mesma linha o seu célebre poema, Canção de Compreender o Tao (Cheng-tao):

             Não vês como vai descuidado esse Homem do Tao, que
                      [abandonou o aprender e não se esforça
(wu-wei)?
                Ele nem evita os falsos pensamentos nem busca a verdade,
                Pois a ignorância é na realidade a natureza de Buda,
                E este corpo ilusório, mutável, vazio, é o corpo
                                                                                 [de Dharma

             Sobre a iniciação no Zen, por Huai-jang, do seu grande sucessor M-tsu (F.788), que nessa altura praticava o meditar sentado no mosteiro de Ch’uan-fa, conta-se a seguinte história.

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             “Vossa reverência”, perguntou Huai-jang, “qual é o objetivo de meditar sentado?”
 “O objetivo”, respondeu Ma-tsu, “é tornar-se um Buda.”
   Perante esta resposta, Huai-jang apanhou um tijolo do chão e começou a poli-lo, esfregando-o num rochedo.
  “Que fazeis, mestre?” perguntou Ma-tsu.
  “Estou a poli-lo para fazer um espelho”, disse Huai-jang.
  “Mas como pode o polir de um tijolo fazer um espelho?”
  “E como pode o meditar sentado fazer um Buda?”

            Ma-tsu foi o primeiro mestreZen célebre por estranhas palavras e extraordinário comportamento”, e é descrito como aquele que caminhava como um touro e olhava como um tigre. Quando um monge lhe perguntou, “Como entrais em harmonia com o Tao?” Ma-tsu replicou, “já estou fora de harmonia com o Tao!”... Contudo, por vezes era mais discursivo, e, numa de suas lições, fala assim sobre o problema da disciplina:

             O Tao nada tem a ver com disciplina. Se dizes que é alcançado pela disciplina, quando a disciplina chega à perfeição pode ser perdido de novo (ou, o acabar da disciplina resulta na perda do Tao), ... se dizes que não há disciplina isso é ser o mesmo que as pessoas comuns.

 
            Shih-t’ou (700-790), discípulo de Hsing-tsu, na linha do Zen Soto, era ainda mais enérgico:
 
    
O meu ensinamento que vem desde os antigos Budas não depende de meditação (dhyana) ou de qualquer tipo de diligente aplicação. Quando atingis a visão interior, tal como foi atingida pelo Buda, compreendeis que mente é Buda e Buda é mente, que mente, Buda, seres sensíveis, bodhi e klesa, são uma única e mesma substância, embora variem nos nomes.

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         Com Nan-ch’üan (748-834), discípulo de Ma-tsu, e o seu sucessor Chao-chou (778-897), o ensino do Zen tornou-se peculiarmente vivo e perturbador. O Wu-men kuan conta como Nan-ch’üan interrompeu uma disputa entre os seus monges pela posse de um gato, ameaçando-os de matar o animal com sua espada se nenhum dos monges conseguisse dizer uma “boa palavra” – isto é, dar uma expressão imediata do seu Zen. Fez-se um silêncio absoluto, e o mestre cortou o gato em dois. Mais tarde, nesse mesmo dia, Nan-ch’üan contou o incidente a Chaou-chou que, imediatamente, pôs os sapatos em cima da cabeça e abandonou o aposento. “Se lá tivesses estado”, disse Nan-ch’üan, “o gato ter-se-ia salvo”.

            Diz-se de Chao-chou que teve seu acordar depois do seguinte incidente com Nan-Ch’üan:
            Chao-chou perguntou, “Que é o Tao?”
            O mestre replicou, “A tua mente vulgar (isto é, natural) é o Tao.”
            “Como podemos voltar à concordância com ele?”
            “Ao tentares alcançar essa concordância, logo te desvias.”
            “Mas, sem intenção, como pode alguém conhecer o Tao?”

            “O Tao”, disse o mestre, “nem pertence ao saber nem ao não-saber. O saber é a falsa compreensão, o não saber é cega ignorância. Se compreendes realmente o Tao para além de qualquer dúvida, ele é como o céu vazio. Porque arrastar para ele o certo e o errado?”

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            Ma-tsu teve em Po-chang (720-814) outro notável discípulo. Afirma-se ter sido ele a organizar a primeira comunidade de monges puramente Zen e a estabelecer os respectivos regulamentos, a partir do princípio de que “dia em que não se trabalha é dia em que não se come”. Desde a sua época, tem sido característica das comunidades Zen a importância dada ao trabalho manual e a um certo grau de manutenção pessoal. Devemos fazer notar que não se trata aqui exatamente de mosteiros, no sentido ocidental do termo. São antes escolas de trino, de onde cada um é livre de sair sem incorrer em qualquer censura. Alguns membros continuam a ser monges durante toda a vida; outros tornan-se padres seculares, encarregados de qualquer pequeno templo; outros ainda regressam a vida laica. Atribui-se a Po-hang a famosa definição do Zen, “Com fome, come; cansado, dorme”. Diz-se que teve seu satori quando Ma-tsu lhe gritou, deixando-o surdo durante três dias, e ter o costume de indicar aos seus discípulos a vida do Zen, com a frase, “Não agarres; não busques”. Uma vez interrogado acerca do significado de buscar a natureza de Buda, respondeu, É como andar a procura de um boi, a cavalo (montado) nele.

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            Precisamente porque a procuram (a natureza de Buda) produzem o efeito contrário que é perderem-na, pois isso equivale a usar o Buda para buscar o Buda, e a usar a mente para agarrar a mente. Muito embora façam o melhor dos esforços para um completo  kalpa, não serão capazes de o atingir.

                Se aqueles que estudam o Tao não acordam para essa substância da mente, criam uma mente para além e acima da mente, buscam o Buda fora deles próprios e continuam presos a formas, práticas e representações – tudo isto sendo nocivo e não o caminho para o supremo conhecimento.

            Muito deste trabalho é dedicado ao esclarecimento do que se significa pelo Vácuo, e pelos termos “não-mente” (wu-hsin) e “não-pensamento” (wu-nien), sendo feita, para todos eles, a cuidadosa distinção do vazio ou nada, literal. Através do texto, encontra-se o uso da linguagem e ideias Taoistas:

            Temendo que nenhum de vós compreendesse, eles (os Budas) deram-lhe o nome de Tao, mas não deveis basear sobre esse nome qualquer conceito. Por isso se diz que “quando se apanhou o peixe esquece-se a armadilha”. (citação de Chuang-tzu) Quando o corpo e a mente obtém a espontaneidade, o Tao é alcançado e pode ser compreendida a mente universal. ... Noutros tempos, as mentes dos homens eram argutas. Após ouvirem uma única frase, abandonavam o estudo e por isso vinham a ser chamados “os sábios que, abandonando a aprendizagem, se apoiam na espontaneidade”. Nos nossos dias, as pessoas só procuram atulhar-se de conhecimento e deduções, dando grande fé a explicações escritas, e a tudo isso chamando a prática.

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            O registro dos ensinamentos de Lin-chi, o Lin-chi Lu (japonês, Rinzai Roku), revela-nos um personagem de imensa vitalidade e extremamente original, ensinando os seus discípulos numa linguagem informal, e por vezes um tanto “picante”. É como se Lin-chi fizesse uso de todo o poder de sua personalidade para forçar o discípulo a um acordar imediato. Muitas e muitas vezes os repreende por não terem suficiente fé em si próprios por deixarem suas mentes “galopar à doida” em busca de algo que nunca perderam, e que está “mesmo à vossa frente neste preciso momento”. Para Lin-chi, o acordar parece ser primordialmente um problema de “genica” – a coragem de “deixar ir” sem mais delongas, com uma inabalável fé em que o agir natural, espontâneo do indivíduo, é a mente de Buda. A sua maneira de tratar o Budismo conceitual, e a obsessão dos alunos com fases a alcançar e fins a atingir, é desapiedadamente iconoclástica.

            ... Vós, seguidores do Tao, galopais à doida em busca da mente, e não sois capazes de parar. Em contrapartida, os antigos avançavam de modo vagaroso, apropriado às circunstâncias (à medida que surgiam).

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             É particularmente enfático (Lin-chi) no que se refere à importância da vida “natural” ou “desafetada” (wu-shih):

           Não há lugar no Budismo para o uso do esforço. Limitai-vos a ser comuns e nada de especial. Aliviai as tripas, acarretai agua, vesti as vossas roupas, comei a vossa comida. Quando estiverdes cansados, ide e repousai. ... quando as circunstancias se apresentarem não deveis tentar modifica-las. Assim, os vossos habituais modos de sentir que produzem karma para os Cinco Infernos, tonar-se-ão por si próprios o grande oceano da libertação.

             E sobre a criação de karma através da busca da libertação:

             Fora da mente não há Dharma, e dentro também nada existe para ser agarrado. O que é isso que buscais? Por todo o lado dizeis que o Tao é para ser praticado e posto à prova. Não vos deixeis enganar! Se existe alguém que o pode praticar, a única coisa que produz é karma para Nascer-e-morrer. Falais acerca de ser perfeitamente disciplinado nos seis sentidos, e nos dez mil modos de comportamento mas, tal como eu o vejo, tudo isso é criar karma. Buscar o Buda e buscar o Dharma é precisamente produzir karma para os infernos.

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 ... o sabor Zen genuíno aparece quando um homem é quase milagrosamente natural, sem pretender sê-lo. ...quando o individuo perdeu já toda e qualquer afetação e consciência de si próprio. Mas um espírito assim vai e vem com o vento, e é coisa quase impossível de institucionalizar e preservar.

 ...Tsung-mi (779-841) foi simultaneamente um mestre Zen e um Quinto Patriarca da Escola Hua-yen, representante da filosofia do Avatamsaka Sutra.

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Esta forma extremamente sutil e amadurecida da filosofia Mahayana, foi utilizada por T’ung-shan (807-869) no desenvolvimento da doutrina dos Cinco Graus (wu-wei), que tratava da relação a cinco níveis entre o absoluto (cheng) e o relativo (p’ien), e foi relacionada pelo seu discípulo Ts’ao-shan (840-901) com a filosofia do I Ching, o Livro das Mudanças.

        Em 845, houve uma breve mas vigorosa perseguição ao Budismo, movida pelo Imperador Taoista Wu-tsung. Foram destruídos templos e mosteiros, confiscadas as respectivas terras, e os monges obrigados a voltar à vida laica. Afortunadamente, o seu entusiasmo pela alquimia Taoista em breve o envolveu em experiências com o “Elixir da Imortalidade” e, graças ao fato de tomar um pouco dessa infusão, morreu a breve trecho. O Zen sobrevivera à perseguição melhor que qualquer outra escola, e entrava agora numa longa era de favor imperial e popular. Centenas de monges vieram fortificar as suas ricas instituições monásticas, e de tal modo prosperaram os destinos da escola, tanto aumentaram os seus números, que a preservação do seu espírito se tornou um problema muito sério.

         A popularidade conduz, quase invariavelmente, a uma deterioração da qualidade e, à medida que o Zen deixou de ser apenas um movimento espiritual informal, para se tornar mais uma instituição estabelecida, sofreu uma curiosa modificação de caráter. Tornou-se necessário “estandartizar” os seus métodos e encontrar processos para que os mestres se pudessem ocupar de grandes números de discípulos. Existiam ainda os problemas específicos que surgem para as comunidades  monásticas, quando cresce o número dos seus membros, cristalizam as suas tradições, e os seus noviços tendem, cada vez mais, a ser simplesmente rapazes sem vocação natural, enviados pelas suas famílias para receberem ensino.

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Não é de subestimar o efeito deste último fator sobre o desenvolvimento do Zen como instituição. Porque a comunidade zen deixou de ser uma associação de homens a amadurecidos, com interesses espirituais, para se tornar quase um só colégio interno eclesiástico para adolescentes.

            Em tais circunstâncias, o problema da disciplina tornou-se primordial. O mestres Zen viram-se na obrigação de se ocuparem, não só com o caminho de libertação da convenção, mas ainda com o instilar de convenção, de maneiras e moral comuns, em jovens muito verdes. O amadurecido estudioso ocidental que se interessa pelo Zen, como filosofia ou como caminho de libertação , deve ter o maior cuidado em manter estes fatos em mente ou, caso contrário, poderá ficar desagradavelmente surpreendido com o Zen monástico, tal como ele existe hoje no Japão.

            Mas outro problema crucial surge também, quando uma instituição espiritual alcança prosperidade e poder – o problema muito humano da competição para obter lugares na escala hierárquica, e saber que tem direito a ser mestre. A preocupação com este problema reflete-se nas páginas do Ch’uan Teng Lu, ou “Relato das transmissões da Lâmpada”, escrito por Tao-yüan cerca de 1004, pois um dos principais objetivos deste trabalho foi estabelecer uma “sucessão apostólica” genuína para a tradição Zen, de modo a que ninguém pudesse reivindicar autoridade sem que o seu

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satori tivesse sido aprovado por alguém que tivesse sido aprovado... e por aí fora, até os tempos do próprio Buda.

            Contudo, nada mais difícil que estabelecer qualificações corretas no imponderável domínio da visão espiritual. Não é muito grave o problema quando os candidatos são poucos, mas quando um mestre é responsável por algumas centenas de estudantes o processo de ensinar e examinar requer uma estandardização. O Zen resolveu este problema com notável habilidade, empregando um meio que não só proporciona um teste de competência, mas ainda – o que é muito importante – uma forma de transmitir a própria experiência do Zen, com um mínimo de falsificação.

            Esta invenção extraordinária foi o sistema Kung-an (japonês, koan) ou “problema Zen”. Literalmente, este termo significa um “documento público” ou “caso” no sentido de uma decisão criando um precedente legal. Assim, o sistema koan implica o “passar” numa série de testes baseados no mondo, ou historietas dos velhos mestres.

... esse método foi usado por Huang-lung (1002-1069) para se haver com o número particularmente vasto dos seus discípulos. Inventou três perguntas conhecidas como “As três Barreiras de Huang-lung”.

            Pergunta: Toda gente tem um lugar de nascimento. Onde é o teu lugar de nascimento?

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            Resposta: Esta manhã, muito cedo, comi papas de arroz branco. Agora estou outra vez com fome.
            Pergunta: Como é a minha mão igual a mão do Buda?
            Resposta: Tocando alaúde. À luz da lua.
            Pergunta: Como é o meu pé igual ao pé de um burro?
            Resposta: Quando a garça branca pousa na neva, tem uma cor diferente.

            Sem dúvidas que as respostas apresentadas são réplicas originais às perguntas mas, mais tarde, o problema passou a ser tanto a pergunta como sua resposta, pois o estudante deve compreender a relação existente entre ambas, o que, para não dizer mais, não é demasiado óbvio. De momento, bastará dizer que cada koan tem uma “intenção” que é um dos aspectos da experiência Zen, que essa intenção é muitas vezes vetada por ser muito mais evidente do que se poderia esperar, e que os koans não dizem respeito ao primeiro acordar para o Vácuo, mas também à sua subsequente expressão na vida e no pensamento.

            O sistema koan foi desenvolvido na Escola Lin-chi (Rinzai) do Zen, mas não sem oposição. A Escola Coto considerou-o demasiado artificial. Enquanto os defensores do koan usavam esta técnica como um meio para encorajar aquele irresistível “sentimento de dúvida” (I ching) que consideravam essencial como requisito prévio para o satori, a Escola Soto argumentava que se prestaria com demasiada facilidade a esta própria busca satori que o afasta, ou – pior ainda – provoca um satori artificial. Algumas vezes têm os defensores da Escola Rinzai dito que a intensidade do satori é proporcional à intensidade do sentimento de dúvida, de busca cega, que o precede. Mas para Escola Soto isto sugere que um tal satori tem caráter dualista, não sendo pois mais que uma reação emotiva artificial. Assim, a opinião da Escola Soto é que o verdadeiro dhyana repousa na ação não motivada (wu-wei), no “sentar-se só por se sentar”, ou “andar só por andar”. Daí terem as dua escolas chegado a ser conhecidas respectivamente como k’an-hua Zen (Zen que respeita a historieta) e mo-chao Zen (Zen silenciosamente iluminado).

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A associação entre a doutrina , amante da paz, do Buda, e as artes guerreiras foi sempre um enigma para as outras escolas Budistas, pois parece implicar o completo divorcio entre acordar e moral. Devemos porém encarar o fato de que, na sua essência, a experiência Budista é uma  libertação das convenções de toda a espécie, inclusivamente das convenções morais . Por outro lado, o Budismo não é uma revolta contra a convenção e, nas sociedades em que a casta militar é parte integrante da estrutura convencional e o papel do guerreiro uma necessidade aceite, o Budismo tornar-lhe-á possível desempenhar esse papel como Budista. Não deve ser menos enigmático para o Cristo, amante da paz, o culto medieval da cavalaria.

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 ... O Zen continuou a prosperar na China até muito para diante na dinastia Ming (1368-1643), altura em que as divisões entre as várias escolas do Budismo começaram a desaparecer, e a popular Escola da Pura Região, com seu “método fácil” de invocar o nome de Amitabha, se começou a fundir com a prática do koan, acabando por absorvê-la.

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          A história do Zen Chinês suscita um problema muito fascinante. Tanto o Zen Rinzai como o Soto, tal como se deparam nos mosteiros japoneses dos nossos dias, dão enorme importância ao za-zen ou “meditar sentado”, uma prática que observam durante muitas horas a dia – pondo grande ênfase na correção da atitude e no modo de respirar que esta implica. Praticar o Zen é, virtualmente, praticar za-zen...o Shen-hui Ho-chang I-chi registra o seguinte dialogo entre Shen-hui e um certo Ch’eng:

            O Mestre perguntou ao Mestre Dhyana Ch’eng: “Que método deve ser praticado para descortinarmos a nossa própria natureza?”

            Em primeiro lugar, é necessário aplicarmo-nos à prática de estar sentado, com as pernas cruzadas, em samadhi. Uma vez obtido o samadhi devemos, por meio do samadhi, acordar em nós próprios o prajna. Através do prajna podemos descortinar a nossa própria natureza.”

  (Shen-hui:) “Quando alguém pratica o samadhi, não se trata de atividade deliberada da mente?”
              (Ch’eng:) “Sim.”
              (Shen-hui:) “Então essa atividade deliberada da mente é uma atividade de consciência restrita; como poderá proporcionar-nos o descortinar da nossa própria natureza?”
              (Ch’eng:) “Para descortinarmos a nossa própria natureza, é necessário praticar o samadhi. De outro modo, como poderíamos descortina-la?”
              (Shen-hui:) “Toda prática de samadhi é, fundamentalmente, uma perspectiva errada. Como pode alguém, pela prática do samadhi, alcançar o samadhi?”

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No entanto, por muito que a prática do za-zen tenha sido exagerada no Extremo Oriente, uma certa dose de “sentar-se só por se sentar” poderia se ótima para as balouçantes mentes e agitados corpos de Europeus e Americanos – desde que não o utilizem como método para se transformarem em Budas.

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