Watts A.W.
O Budismo Zem
Primeira Parte – Fundamentos e História
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3 – Budismo Mahayana

 
Porque era um caminho de libertação, os ensinamentos do Buda tinham como único objetivo a experiência do nirvana. O Buda não tentou estabelecer um sistema filosófico consistente, para satisfazer aquela curiosidade intelectual acerca das coisas supremas, que espera respostas sob a forma de palavras. Quando lhe pediam tais respostas, quando interrogado sobre a natureza de nirvana, a origem do mundo e a realidade do Próprio, o Buda mantinha um “nobre silêncio”, e continuava a dizer que tais perguntas eram irrelevantes e não conduziam à verdadeira experiência de libertação.

Muitas vezes se disse que o ulterior desenvolvimento do budismo se deve à incapacidade da mente indiana para se contentar com esse silêncio, pelo que se viu finalmente obrigada a satisfazer o seu irresistível desejo de “especulações metafísicas abstratas”  sobre a natureza da realidade. Contudo, um tal aspecto da gênese do budismo Mahayana é assaz enganador. O vasto volume da doutrina Mahayana não surgiu tanto para satisfazer a curiosidade intelectual como para resolver os problemas psicológicos práticos que se encontraram ao seguir o caminho do Buda. Por certo que o tratamento destes problemas é... escolástico... muito pomposo.

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 Mas o seu fim objetivo é produzir a experiência da libertação, e não construir um sistema filosófico. Como diz Sr. Arthur Berriedale Keith:

A metafísica do Mahayana mostra bem claramente, na incoerência dos seus sistemas, o interesse secundário de que ela se revestia aos olhos dos monges, cujo principal interesse se concentrava em alcançar a libertação... essencialmente pelo seu fim prático... sua filosofia apenas tem valor na medida em que ajuda os homens a atingir o seu objetivo.

 Há, sem dúvida, aspectos em que o Budismo Mahayana representa uma concessão tanto á curiosidade intelectual como a um desejo muito vulgar por atalhos que conduzam rapidamente ao fim. Mas, na base, é o trabalho de mentes altamente sensíveis e perceptivas, estudando o seu próprio funcionamento interior... a impressão que recebemos é que, enquanto o Cânone Pali abriria a porta do nirvana por puro esforço, o Mahayana rodaria a chave até que esta girasse suavemente. A grande preocupação do Mahayana está pois em fazer provisão de “meios hábeis” (upaya) para tornar o nirvana acessível a qualquer tipo de mentalidade...

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             O relato tradicional mahayanista da sua própria origem é que os seus ensinamentos foram transmitidos pelo Buda a seus discípulos próximos, mas sua revelação pública guardada até que o mundo estivesse pronto para ela... o problema das origens históricas do Mahayana não é de importância direta para uma compreensão do Zen, o qual, sendo mais uma forma chinesa que indiana do Budismo, nasceu quando o Mahayana indiano era já adulto. Podemos pois passar às doutrinas essenciais do Mahayana, de onde surgiu o Zen.

            O Mahayana distingue-se do Budismo do Cânone Pali, chamando a este o Pequeno (hina) Veículo (yana) de libertação, e a si próprio o Grande (maha) Veículo – grande por englobar uma tal abundância de upaya, ou métodos para a realização de nirvana. Estes métodos vão desde a sofisticada dialética de Nagarjuna, cujo objetivo é libertar a mente de

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 todos os conceitos físicos, até o até ao sukavati ou Pura Região, doutrina de libertação através da fé no poder de Amitabha, o Buda da Luz Sem Limites, que se diz ter atingido o acordar muitos éons antes do tempo de Gautama. Incluem mesmo o Budismo Tântrico da Índia medieval segundo o qual a libertação pode ser alcançada através da repetição de palavras sagradas e formulas chamadas dharani, e ainda através de tipos especiais de ioga, que englobam relações sexuais com uma chakti ou “esposa espiritual”.

          Um estudo preliminar do Cânone Pali daria certamente a impressão de nirvana só pode ser realizado através de rigoroso esforço e autocontrole, e que aquele que a ele aspira deveria abandonar todas as outras preocupações para se dedicar exclusivamente a conseguir este ideal.

 Os mahayanistas podem ter toda razão a razãoao assumir que o Buda pretendeu fazer deste exclusivo interesse um upaya, um meio hábil de proporcionar a possibilidade de compreender, concreta e vivamente, o absurdo círculo vicioso de desejar não desejar, ou de tentar libertar-se do egocentrismo por si próprio, pois esta é, decerto, a conclusão a que conduz a prática da doutrina do Buda.

 Poderemos atribuí-lo a preguiça e falta de coragem, mas parece-nos mais plausível sugerir que aqueles que se mantiverem no caminho no caminho da auto libertação estavam simplesmente inconscientes do paradoxo nele envolvido.

 Porque quando o Mahayana continua a ensinar o caminho de libertação através do esforço próprio, fá-lo apenas como um expediente para levar o indivíduo a uma viva compreensão da sua própria futilidade.

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Várias indicações sugerem que uma das primeiras noções do Mahayana foi a concepção do Bodhisatava, não simplesmente como um Buda em potência, mas como alguém que, pela renuncia ao nirvana, estava a um nível espiritual superior ao daquele que o atingia, e assim escapava ao mundo do nascimento-e-morte. No Cânone Pali, os discípulos de Buda que alcançaram nirvana são chamados Arhans ou “os merecedores”, mas nos textos Mahayana o ideal do Arhan é considerado quase egoísta. É apenas próprio para o sravaka, ou “ouvinte” da doutrina que ainda só chegou até uma compreensão teórica. Contudo, o Bodhisattava é aquele que compreende haver uma profunda contradição num nirvana alcançado por si próprio e para si próprio. Do ponto de vista popular, o Bodhisattava tornou-se um centro de devoção (bhakti), um salvador do mundo que tinha jurado não entrar no nirvana final, antes que todos os outros seres sensíveis o tivessem também alcançado. Por eles, consentiu em nascer e voltar a nascer continuamente no Círculo de samsara, até que, no decurso de inúmeras idades, mesmo a erva e o pó tivessem alcançado o estado de Buda.

Mas, de um ponto de vista mais profundo, tornou-se evidente que a ideia do Bodisattava está implícita na lógica do Budismo, que ela decorre naturalmente do princípio  do não-agarrar e da doutrina da irrealidade do ego. Porque se nirvana é o estado em que a tentativa de agarrar a realidade cessou completamente, graças á compreensão da sua impossibilidade, será obviamente absurdo pensar no próprio nirvana como algo a ser agarrado ou atingido. Se, além disso, o ego é mera convenção, é insensato pensar no nirvana como um estado a ser atingido por qualquer ser. Como se diz no Vajracchedika:

            Todos os heróis-Bodhisattva deviam levar as suas mentes a pensar: todos os seres sensíveis de não importa que classe... são conduzidos por mim a atingir a libertação sem limites de nirvana. Porém, quando vastas, inúmeras, incomensuráveis quantidades de seres tiverem sido assim libertos, em verdade nenhum ser terá sido liberto! Porque é isto assim, Subhuti? Porque nenhum Bodhisattva que seja verdadeiramente um Bodhisattva, se apega à ideia de um ego, uma personalidade, um ser, ou um indivíduo separado dos outros.

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                                                                                                                         (delírio!!)

            Como corolário desta posição temos que, se não há nirvana que possa ser atingido, e se, na realidade não há entidades individuais, a nossa escravidão ao Círculo é mera aparência, e que de fato estamos já em nirvana- pelo que procurar nirvana é a loucura de pretender encontrar o que nunca se perdeu. Assim, naturalmente, o Bodhisattva não faz qualquer movimento para se arrancar ao Círculo de samsara, como se nirvana estivesse em qualquer outro lado, pois faze-lo implicaria que nirvana  é algo que necessita ser atingido e que samsara é uma verdadeira realidade. Segundo as palavras do Lankavatara Sutra:

            Aqueles que, temerosos dos sofrimentos que surgem da discriminação de nascimento-e-morte (samsara), buscam Nirvana, não sabem que nascimento-e-morte e Nirvana não estão separados um do outro; e, vendo que todas as coisas sujeitas à discriminação não têm realidade, imaginam que Nirvana consiste na futura aniquilação dos sentidos e dos seus campos. 2 – Em Suzuki: Os “campos” dos sentidos são as áreas ou aspectos do mundo exterior, com que se relacionam os órgãos de cada sentido particular(nota de rodapé).

            Assim, lutar para obliterar o mundo convencional de coisas e acontecimentos, é admitir que ele existe na realidade. Daí o princípio mahayanista de que “aquilo que nunca nasceu não precisa ser aniquilado”.

            Não se trata das ociosas especulações e sofismas de um sistema de idealismo ou niilismo subjetivo. São respostas a um problema prático, que se poderá exprimir desta maneira: “Se o meu agarrar a vida me envolve num círculo vicioso, como poderei aprender a não agarrar? Como poderei tentar soltar, quando tentar é precisamente não soltar?” Dito por outras palavras, tentar não agarrar é a mesma coisa que agarrar, dado que sua motivação é a mesma – o meu veemente desejo de me salvar de uma dificuldade. Não posso ver-me livre deste desejo, dado que ele é precisamente o mesmo desejo que o desejo de me ver livre dele!

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 Este é o problema familiar de todos os dias... o psicológico de criar o problema por tentar resolve-lo... de preocuparmos porque nos preocupamos... de ter medo de ter medo.

            A filosofia mahayana propõe uma resposta drástica mas eficiente que constitui o tema de um gênero da literatura chamado Prajana-paramita, ou “sabedoria para passar a outra margem”, uma literatura estreitamente relacionada com os trabalhos de Nagarjuna (cerca de 200 D.C.), que fica ao lado de Chankara como um dos maiores espíritos da India. A traços largos, a resposta é que todo e qualquer agarrar, mesmo em relação a nirvana, é fútil – porque nada existe para ser agarrado. Esta constitui a célebre Sunyavada de Nagarjuna, a sua “Doutrina do Vácuo”, também conhecida como Madhyamika, o “caminho do meio”, porque refuta quaisquer proposições metafísicas, pela demonstração do seu relativismo. Segundo o ponto de vista de Nagarjuna são, sem dúvida, uma certa forma de niilismo ou “relativismo absoluto”. Mas não é esse o ponto de vista de Nagarjuna. A dialética com que ele lança por terra todo e qualquer conceito de realidade é apenas um utensílio para quebrar o círculo vicioso do agarrar, e a conclusão da sua filosofia não é o desespero abjeto do niilismo, mas a natural, a não planejada, benção (ananda) da libertação.

            A Sunyavada toma o seu nome do termo sunya, vácuo ou sunyata, vacuidade, com que nagarjuna descreveu a natureza da realidade, ou antes, das concepções da realidade que a mente humana pode formar. O termo concepções não inclui apenas aspectos metafísicos, mas também ideais, crenças religiosas, esperanças supremas e ambições de toda a espécie – tudo que a mente do homem procura e agarra para sua segurança física e espiritual. A Sunyavada não lança por terra apenas as crenças que se adotam conscientemente; busca também os esconderijos inconscientes do pensamento e da ação, e submete-os ao mesmo tratamento até que as mais recônditas profundidades da mente sejam reduzidas a um silêncio total.

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 Mesmo a própria ideia de sunya deve ser “vacuizada”. 

                Não pode ser chamado de vácuo ou não vácuo,
                Nem ambos nem nenhum deles;
                Mas de modo a podermos indica-lo,
                É chamado “o Vácuo”.

            Por certo que Stcherbatsky tem razão ao pensar que a Sunyavada é melhor chamada de doutrina de relatividade. Porque o método de Nagarjuna consiste simplesmente em mostrar que todas as coisas são destituídas de “natureza própria” (svabhava) ou realidade independente, dado que só existem em relação a outras coisas.

             Nada no Universo se pode sustentar por si próprio – nenhuma coisa, nenhum fato, nenhum ser, nenhum acontecimento – e por tal razão é absurdo singularizar qualquer coisa como o ideal a ser alcançado. Porque o que é singularizado apenas existe em relação a seu próprio oposto, dado que o que é se define pelo que não é, o prazer sendo definido pela dor, a vida definida pela morte, e movimento definido pela imobilidade.

            Obviamente, a mente não consegue formar uma ideia daquilo que “ser” significa sem o contraste de “não ser”, posto que as ideias de ser e não-ser são abstrações de experiências tão simples como a de ter um tostão na mão direita e nenhum na esquerda.

            Sob um certo ponto de vista, a mesma relatividade existe entre nirvana  e samsara, bodhi (acordar) e klesa (corrupção). Quer isto dizer que a busca de nirvana implica existência e o problema de samsara, e a demanda do acordar implica que se está no estado de corrupção pelo ilusório. Por outras palavras: assim que se faz de nirvana um objeto de desejo, logo ele se torna um elemento de samsara. O nirvana real não pode ser desejado porque não pode ser concebido. Assim, o Lankavatara Sutra diz:

            Uma vez mais, Mahamati, o que é que significa não-dualidade? Significa que luz e sombra, comprido e curto, preto e branco, são termos relativos, Mahamati, e não independentes um do outro; tal como Nirvana e Samsara, todas as coisas são não duais. Não há Nirvana excepto onde há Samsara; não há Samsara exceto onde há Nirvana; porque a condição de existência não é de caráter mutuamente exclusivo. Por isso se diz que todas as coisas são não-duais, tal como o são Nirvana e Samsara.

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             Mas a equação “Nirvana é samsara” é também verdadeira num outro sentido – nomeadamente, que o que nos parece ser samsara é na realidade nirvana, e o que parece ser o mundo da forma (rupa) é na realidade vácuo (sunya). Daí a célebre frase:

             A forma não é diferente do vazio; o vazio não é diferente da forma. A forma é precisamente vazio; o vazio é precisamente forma.

           Uma vez mais, isto não significa que o acordar dê azo a que o mundo da forma desapareça sem deixar rastro, visto que nirvana não é procurado como “a futura aniquilação dos sentidos e dos seus campos”. O sutra pretende dizer que a forma é vácuo tal como ela é, em toda a sua aguda singularidade.    

            O que esta equação pretende não é manter uma proposição metafísica, mas auxiliar o processo de acordar. Porque o acordar não acontecerá enquanto tentarmos escapar ao, ou mudar o cotidiano mundo da forma, ou afastarmo-nos da particular experiência em que nos encontramos neste determinado momento. Toda e qualquer tentativa desta natureza é uma manifestação do agarrar. Mesmo o próprio agarrar não deve ser modificado a força porque,

            Bodhi (acordar) é as cinco ofensas, e as cinco ofensas são bodhi... Se alguém encara bodhi como algo a ser atingido, a ser cultivado pela disciplina, é culpado do orgulho do Próprio.

            Algumas dessas passagens sugerem talvez que o Bodhisattava pode até ser um tipo mundano, bonacheirão, que –  de qualquer modo, samsara é nirvana – pode ir levando sua

vida como muito bem lhe agradar. Poderá ele estar perfeitamente iludido mas, dado que mesmo a ilusão é bodhi, não haveria qualquer interesse em modificar isso. 

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Existe muitas vezes uma enganadora semelhança entre extremos opostos. Muitos lunáticos há que parecem santos, e a desafetada modéstia do sábio muitas vezes o fazem assemelhar-se a uma pessoa perfeitamente vulgar.

Mas não é coisa fácil encontrar a diferença (entre o sábio e o tolo?), dizer o que é aquilo que o homem comum, mundano, faz ou deixa de fazer, e que o torna diferente de um Bodhisattava, ou vice-versa. Todo o mistério do Zen repousa neste problema e a ele voltaremos na devida altura. Por agora, será suficiente dizermos que a chamada “pessoa comum” é apenas aparentemente natural. Na prática é simplesmente impossível decidir, intencionalmente, deixar de procurar nirvana e levar uma vida comum, posto que a vida “comum” logo que é intencional deixa de ser natural. 

            É por esta razão que a insistência dos textos Mahayana sobre a intangibilidade de nirvana e bodhi não é algo para ser aceito teoricamente, como mera opinião filosófica. É necessário sentir “nos ossos” que nada existe para ser alcançado e agarrado.   

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            Chegamos, pois, ao ponto em que fica claramente entendido que todos os atos intencionais – desejos, ideais, estratagemas – são em vão. Em todo o universo, dentro e fora, nada existe que se possa agarrar, e ninguém que possa agarrar seja o que for... 

Com o “olhar de prajna” (sabedoria intuitiva) a situação humana é encarada na sua realidade – um matar a sede com agua salgada, um tentar alcançar objetivos que apenas requerem a busca de outros objetivos, um apegar-se a objetos que o rápido decorrer do tempo  torna tão insubstanciais como o nevoeiro...

            Um momento chega em que esta consciência da inescapável armadilha em que somos, ao mesmo tempo, o caçador e a caça, alcança seu ponto de ruptura. Quase poderíamos dizer que ela “amadurece”, e acontece subitamente... uma “reviravolta na mais profunda sede da consciência”. Nesse momento, toda sensação de constrangimento desaparece, e o casulo que o bicho-da-seda teceu ao redor de si próprio abre-se para deixá-lo sair, alado, como borboleta... Artifícios, ideais, ambições e autoconciliações, deixam de ser necessários, pois é agora possível viver espontaneamente sem tentar ser espontâneo. Na realidade, não há sequer outra alternativa, dado que se vê agora nunca ter existido qualquer Próprio para manter o Próprio sob seu controle. 

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            Reduzido ao essencial, é assim o processo interior que o Sunyavada tenta por em movimento com sua filosofia de total negação. Assim, a maior parte do trabalho de Nagarjuna foi uma refutação, cuidadosamente lógica de todas as posições filosóficas existentes na Índia do seu tempo. Aceitando que seu objetivo seja uma experiência interior, os estudiosos ocidentais sempre tiveram grande dificuldade em compreender como poderia um ponto de vista tão puramente negativo ter quaisquer consequências criadoras. Deveremos, pois, repetir que a negação se aplica não a própria realidade, mas às nossas ideias de realidade. O conteúdo positivo e criador do Sunyavada não reside na própria filosofia, mas na nova visão da realidade que é revelada quando sua tarefa acaba, e Nagarjuna não vem estragar essa visão, tentando descreve-la... 

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Um buda é um Tathagata, um “que-vai-assim”, porque acordou para esse mundo primário, não-conceitual, sem palavras que o descrevam, e não o confunde com ideias de ser ou não-ser, bom ou mau, permanente ou impermanente...

Uma das principais doutrinas do Mahayana é a de que todos os seres são dotados com a natureza de Buda, tendo pois a oportunidade de se tornarem Budas. Por causa da identidade entre natureza de Buda e tathata, o termo “Buda” é frequentemente usado para designar a própria realidade e não apenas o homem acordado. Sucede por isso que, no Mahayana, um Buda é muitas vezes encarado como uma personificação da realidade, formando assim a base daqueles cultos populares em que os Budas parecem ser venerados como deuses. E digo “parecem ser” porque mesmo o Budismo Mhayana não tem equivalente real para o teísmo Judaico-Cristão, com sua estrita identificação de Deus como princípio moral.

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 Além disso, os vários Budas que são tão venerados – Amitaba, Vairocana, Amitayus, Ratnasambhava, etc. – são sempre personificações da verdadeira natureza do próprio venerador.

                 Aqui reside também a base do Budismo de fé, da escola Sukhavati ou Pura Região, onde se firma que todos os esforços do indivíduo para se tornar um Buda são apenas o Falso orgulho do ego. É apenas necessário repetir a formula namo-amitabhaya (literalmente, “o nome de amitaba” ou “Salvé, Amittabhaya”) na crença de que isto, só por si, é suficiente para provocar o renascimento do individuo na Pura Região, à qual preside Amithaba. Nesta pura região todos os obstáculos que, neste mundo, se erguem no caminho que conduz ao estado de Buda, são removidos, pelo que renascer na Pura Região equivale virtualmente a tornar-se um Buda. A repetição do nome é considerada eficiente porque, em tempos passados, Amithaba fez o voto que não entraria no supremo estado de Buda sem que o renascimento na Pura Região fosse assegurado a todos os seres que invocassem o seu nome.

Dado que ele entrou subsequentemente no supremo estado de Buda, conclui-se que seu voto foi realmente cumprido.

            O próprio Nagarjuna simpatizava com essa doutrina, por constituir ela uma forma popular, e mais figurativa, de dizer que, posto que a nossa verdadeira natureza é já a natureza de Buda, nada temos a fazer para para operar a transformação. Pelo contrário, tentar transformarmo-nos em Buda e negar que somos já Buda. Shinran, o grande interprete japonês da Pura Região, chegou mesmo ao ponto de dizer que era apenas necessário repetir o nome, pois via que a tentativa de fazer um ato de fé era demasiado artificial, e conduzia o individuo a duvidar da sua própria fé.

            O Budismo Pura Região é obviamente uma consequência da doutrina Bodhisattava, segundo o qual o trabalho que convém ao homem libertado é a libertação de todos os outros seres através de upaya ou “meios hábeis”. Através de prajana, ou sabedoria intuitiva, ele

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 apercebe-se da natureza da realidade, o que, por sua vez, vem acordar karuna ou compaixão para com todos aqueles que estão presos aos laços da ignorância. No seu nível mais profundo, karuna significa algo de bastante mais que compaixão pela ignorância de outros. Na verdade, vimos já que o regresso do Bodhisattava ao mundo de samsara se baseava no princípio de que samsara é de fato nirvana, e que “o vácuo é precisamente forma”. Se prajana é ver que “forma é vácuo”, karuna é ver que “o vácuo é foema”. É portanto uma “afirmação” do mundo cotidiano no seu natural “tal-qual (ismo)”, e é este um dos aspectos do Mahayana a que maior ênfase se dá no Zen. Na verdade aponta a insensatez da ideia de que o Budismo é sempre uma filosofia de negação do mundo, em que a singularidade das formas não tem importância. Karuna foi o motivo por que o Budismo Mahayana se tornou a principal inspiração da arte chinesa durante as dinastias Sung e Yüan, uma arte mais interessada em realçar as formas naturais que os símbolos religiosos. Porque, através de karuna, v~e-se que a dissolução das formas no vácuo não é de modo algum diferente das características específicas das próprias formas. A vida das coisas só convencionalmente pode ser separada da sua morte; na realidade o morrer é o viver.

            A percepção de cada forma singular, tal como é, é o vácuo, e de que, além disso, a singularidade de cada forma nasce do fato de ela existir, em relação a toda e qualquer outra forma, está na base do Dharmadhatu (“região de Dharmas”), a doutrina do enorme Avatamsaka Sutra. Esta volumosa obra é provavelmente o ponto culminante e final do Mahayana indiano, e uma das suas imagens principais é uma vasta rede de cristais ou pedras preciosas, como uma teia de aranha ao amanhecer, em que cada cristal reflete todos os outros. Esta rede de cristais é o Dharmadhatu, o universo, a região de inúmeros dharmas ou “coisas-acontecimentos”. (coisas-acontecimentos ou objetos na analise de sistemas voltada aos objetos)

            Comentadores chineses elaboraram uma classificação quadripartida do Dharmadhatu, que se tornou de considerável importância para o Zen, nos fins da dinastia T’ang. A sua

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 classificação das “Quatro Regiões do Dharma” era como segue:

       1)      Shih, as “coisas acontecimentos” singulares, individuais, de que o universo se compõe;
 2)     
Li, o “princípio” ou suprema realidade subjacente à multiplicidade das coisas;
3)     
Li shih wu ai, “nenhuma obstrução entre coisa e coisa”, o que significa não haver incompatibilidade nirvana e samsara, vácuo e forma. O alcançar de um não implica a aniquilação do outro;
4)   
Shih shih wu ai, “nenhuma obstrução entre coisa e coisa”, o que significa que cada “coisa-acontecimento” implica todas as outras, e que a mais perfeita visão interior  é simplesmente a percepção destas no seu natural “tal-qual(ismo)”. A este nível, cada “coisa acontecimento” é encarada como auto determinante, auto produtora ou expontânea, pois ser muito naturalmente o que é, ser tatha – precisamente “assim” – é ser livre e sem obstrução. 

  A doutrina do Dharmadhatu é pois, aproximadamente, a de que a perfeita harmonia do universo se realiza quando se permite a cada “coisa acontecimento” ser livre e espontaneamente o que ela própria é, sem interferência. De um modo mais subjetivo, corresponde a dizer, “Deixa que tudo tenha liberdade de ser tal como é. Não te desligues do mundo para tentar comanda-lo”. Há uma sutil distinção entre o que fica dito e o mero laissez faire, a qual poderá ser sugerida pelo modo como movemos nossos membros. Cada um deles se move por si próprio, a partir de dentro. Para andar não agarramos os pés com as mãos. O corpo individual é pois um sistema shih shih wu ai, e um Buda compreende que todo o universo é o seu corpo, uma harmonia maravilhosamente interrelacionada, organizada a partir de dentro de si própria, e não por qualquer interferência do exterior.

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            A filosofia Mahayhana considera o corpo de Buda como triplo, como Trikaya ou “triplo corpo”. Considerado como a multidão de “coisas-acontecimentos” ou na sua forma humana e específica, o seu corpo é denominado Nirmanakaya ou “corpo de transformação”. As formas humanas específicas são as de Budas históricos e pré-históricos tasi como Gautama, Kasyapa, ou Kanakamuni, e posto que aparecem “em carne e osso” o Nirmanakaya inclui, em princípio, todo o universo da forma. Vem depois o Sambhogakaya, ou “corpo de Alegria”. Esta é a esfera de prajna, sabedoria, e karuna, compaixão, esta última olhando para baixo para o mundo da forma, e a primeira olhando para cima para o domínio do vácuo. Sambhokaya poderia ser também chamado “Corpo de Compreensão” visto ser neste “corpo” que um Buda compreende que é um Buda. Vem finalmente Dharmakaya, o “Corpo Dharma”, que é o vácuo, o próprio sunya.   

            Nagarjuna não discutiu o modo como o vácuo aparece como forma, o Dharmakaya como Niamanakaya, sentindo que isto seria completamente ininteligível para aqueles que não tivessem verdadeiramente realizado o acordar. O próprio Buda tinha comparado as perguntas a esse respeito à loucura de um homem atingido por uma flecha, que não permitisse que lha arrancassem da carne até lhe haverem descrito todos os pormenores do aspecto do seu agressor, da sua família e dos seus motivos...

            De acordo com o Iogacara o mundo da forma é cittamatra – “apenas mente” – ou vijnaptimatra – “apenas representação”. Esta opinião parece ter uma semelhança muito próxima com as filosofias ocidentais de idealismo subjetivo, em que o mundo exterior e material é encarado como uma projeção da mente. Contudo, parecem existir algumas diferenças entre os dois pontos de vista. Aqui, como sempre, Mahayana não é tanto uma construção teórica e especulativa como o relato de uma experiência interior e um meio de despertar, em outros, essa mesma experiência. Além disso, a palavra citta não é pre.......

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precisamente equivalente ao nosso “mente”. O pensamento ocidental tende a definir a mente por oposição à matéria, e a considerar matéria não tanto como “medida” como a coisa sólida que é medida. Medida em si, abstração é, para o ocidental, mais da natureza de mente, dado que tendemos a encarar a mente e o espírito mais como abstrato do que com concreto.

            Mas, na filosofia Budista, citta não comporta qualquer antagonismo contra uma concepção de matéria sólida. O mundo nunca foi considerado em termos de uma substância primária, moldada em várias formas pela ação da mente ou espírito. Tal imagem não existe na história do pensamento Budista, e portanto nunca surgiu o problema de saber como pode a mente impalpável influenciar a matéria sólida. Onde quer que se deva falar de mundo material, ou físico, ou substancial, o Budismo emprega o termo rupa o qual corresponde mais ao nosso “forma”, que ao nosso “matéria”. Não existe qualquer “substância material” subjacente a rupa, salvo o próprio citta!.

            A dificuldade em equacionar e comparar idéias orientais e ocidentais reside em que os dois mundos não partem dos mesmos pressupostos e premissas. Não têm as mesmas categorizações básicas da experiência. Portanto, onde o mundo nunca foi dividido em mente (espírito) e matéria, mas antes em mente e forma, a palavra “mente” não pode significar exatamente  a mesma coisa em ambos os casos. A palavra “homem”, por exemplo, não tem precisamente o mesmo sentido quando contrastada como “mulher”, como quando contrastada com “animal”.

            ... os idealista ocidentais começaram a filosofar a partir de um mundo constituído por mente (ou espírito), forma e matéria, ao passo que os budistas começaram a filosofar a partir de um mundo de mente e forma.

            O Ioagacara não discute pois a relação entre formas de matéria e mente; discute a relação entre formas e mente, concluindo que são formas de mente (itálico original, grifo nosso). Como resultado, o termo “mente” (citta) perde logicamente qualquer sentido.

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 Porém, dado que a principal preocupação do Budismo reside num domínio de experiência que é não logico e sem sentido, não existe qualquer objeção contra termos “sem sentido”.

            A partir do ponto de vista lógico, a proposição “Tudo é mente” nada mais diz de que tudo é tudo. Porque se nada existe que não seja mente, o mundo não pertence à classe alguma, e não tem limites nem definição. Quase poderíamos usar “bla” – o que é quase precisamente, o que o budismo faz ao usar a palavra absurda tathata, “tal-qual(ismo)”. Porque a função desta terminologia absurda é chamar-nos a atenção para o fato de que a lógica e o significado, com a sua inerente dualidade, é uma propriedade do pensamento e da linguagem, mas não do mundo real. O mundo concreto e não verbal não contem quaisquer classes ou símbolos, significando qualquer outra coisa além dele próprio. Consequentemente, não comporta dualidade. Porque a dualidade só surge quando classificamos, quando distribuímos as nossas experiências por caixas mentais, dado que uma caixa não é caixa sem um interior e um exterior.

As caixas mentais já estão provavelmente formadas nas nossas mentes muito antes que o pensamento e a linguagem formal forneçam rótulos para as identificar. Começamos a classificar assim que notamos diferenças, regularidades e irregularidades, logo que fazemos associações de qualquer espécie. Mas – e isso se apalavra “mental” chega a significar alguma coisa – este ato de classificação é certamente mental, pois notar diferenças e associa-las umas as outras é algo mais que a simples resposta a contatos sensoriais. Mas se as classes são um produto da mente, do notar, da associação, do pensamento e da linguagem, então o mundo, considerado simplesmente como todas suas classes de objetos, é um produto da mente.

É isso, creio, o que o Iogacara pretende pela asserção de que o mundo é apenas mente (cittamatram lokam). Significa que exterior e interior, antes e depois, pesado e leve, agradável e doloroso, móvel e imóvel, são idéias ou classificações mentais... o mundo que conhecemos quando entendido como sendo o mundo classificado, é um produto da mente e, tal como o som “água” não é verdadeiramente água, o mundo classificado não é o mundo real.

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O problema de “o que” a mente é, podemos agora vê-lo, é o mesmo que o problema de “o que” é o mundo real. Não existe resposta... Porque a mente  

está para além de todas as opiniões filosóficas, é estranha à discriminação, não é atingível e nunca nasce sequer: digo que não há nada senão Mente. Não é uma existência, nem é uma não existência; está, em verdade, para além da existência e da não existência...

Dentro desse indefinido contínuo de citta o Iogacara descreve oito tipos de vijnana ou “consciência discriminante”. Há uma consciência apropriada a cada um dos cinco sentidos; há o sexto sentido-consciência (mano-vijnana), unificando as outras cinco de modo a que, por exemplo, o que é tocado ou ouvido se possa relacionar com

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 o que é visto; há manas, centro da atividade discriminante e classificativa da mente; e há, por fim, a “consciência-depósito” (alaya-vijnana), a mente supra individual que contém as sementes de todas as formas possíveis.

            A “consciência depósito” é quase equivalente ao próprio citta, e é supra individual porque surge antes de qualquer diferenciação. Não deve ser concebida como uma espécie de gás fantasmagórico passando através de todos os seres, dado que, aqui, o espaço e a extensão apenas estão como potencialidade. Por outras palavras, a “consciência depósito” é aquilo de onde o mundo formal surge espontaneamente... o Mahayana não comete o erro de tentar encarar a criação do mundo como se este procedesse da mente através de uma série de causas necessárias.

Tudo o que se liga por necessidade causal é do mundo de Maya, não de para além dele. Para falarmos um tanto poeticamente, a ilusão do mundo sai do Grande Vácuo sem qualquer razão, sem propósito algum, e precisamente porque não há necessidade de que o faça. Porque a “atividade” do vácuo é jovial ou vikridita pois não é ação motivada (karma).

            Assim, tal como o iogacara o descreve, a criação do mundo formal surge espontaneamente da “consciência-depósito”, ocupa o manas, onde se processam as diferenciações primordiais, passa depois aos seis sentidos ou “portões” (ayatana) através dos quais projeta finalmente o mundo externo classificado.

            O ioga Budista consiste, pois em inverter o processo, em deter a atividade discriminativa da mente, e deixar que as categorias de maya recaiam na potencialidade a fim de que o mundo possa ser visto no seu inclassificado “tal-qual(ismo)”.

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